Um certo contraste entre o nítido e o nebuloso chama atenção em A Tragédia de Macbeth, versão de Joel Coen para a célebre peça de William Shakespeare. Os personagens frequentemente surgem e somem na névoa, recurso estético que realça que há muito de enganoso na diabólica trama impulsionada pelo casal Macbeth, que não hesita em matar para alcançar o poder. As verdadeiras intenções não se manifestam nas palavras, e sim em ações clandestinas, ocultadas, mas não do público, que tem total acesso às motivações dos personagens. Talvez por isso, as imagens do filme também sejam bastante evidentes, a julgar pelos closes em rostos ao longo da projeção – cabe elogiar a bela fotografia em preto e branco de Bruno Delbonnel.
Filmando inteiramente em estúdio, Joel Coen prioriza espaços fechados, mas sem perder de vista a recriação de cenários naturais. Em relação às áreas cobertas sobressai a lembrança das estruturas arquitetônicas das cenografias do suíço Adolphe Appia, que valorizou uma espacialidade favorável ao trabalho do ator, sem os habituais excessos de uma cena realista voltada para o ilusionismo da plateia, e conectada com os avanços da iluminação na metade do século XIX em diante. A Tragédia de Macbeth é um projeto centrado na interface entre teatro e cinema, aproveitando, da primeira forma artística, o uso expressivo de um espaço restrito e o minucioso estudo da peça junto aos atores, e, da segunda, uma orquestração exata de elementos técnicos que adquirem o status de texto na tela, a exemplo da rigorosa partitura sonora que potencializa algumas passagens.
No que se refere à condução dos atores, Joel Coen investe num tom menor, nada grandiloquente, escolha pertinente em se tratando de uma peça que justamente coloca o espectador frente ao movimento do pensamento dos personagens. Há uma ou outra sequência que destoa desse senso de medida, como a do delírio de Macbeth durante o jantar. Não é um problema. Afinal, os momentos pelos quais os protagonistas atravessam não têm o mesmo grau de intensidade. Denzel Washington adere à sutileza, assim como Frances McDormand, que se mostra um pouco acima de seu parceiro de cena e vence o desafio lançado por uma personagem elíptica, que sofre mudanças de estado emocionais abruptas no decorrer da peça e precisa soar verossímil a cada nova aparição. Vale dizer que a presença de atores negros não se limita a Macbeth, estendendo-se também aos escalados para interpretar os integrantes da família Macduff (Corey Hawkins, Moses Ingram, Ethan Hutchison) e Seyton (James Udom).
Em A Tragédia de Macbeth, Joel Coen realiza operações na esfera da dramaturgia – o tratamento destinado às bruxas é um destaque, nesse sentido – e da concepção visual sem, contudo, enveredar por uma desconstrução da peça de Shakespeare. Presta considerável contribuição na visita a um texto transportado com constância para o cinema por diretores diversos – Orson Welles, Akira Kurosawa, Roman Polanski, Justin Kurzel – em abordagens com diferentes níveis de intervenção sobre o material original. O resultado foi contemplado com indicações ao Oscar nas categorias ator, fotografia e direção de arte.
Há 15 anos Marieta Severo e Andréa Beltrão partiram possivelmente para a maior aventura de suas carreiras: ter um teatro próprio. Assim surgiu o Teatro Poeira, nome que remete à tradição do cinema poeira, designação – frisada no minucioso livro de Alice Gonzaga (Palácios e Poeiras) – referente às antigas salas de bairro, de aparência e estrutura bem mais simples que as grandes e lendárias edificações onde os filmes mais concorridos eram exibidos.
Havia riscos evidentes. Desde o início, Marieta e Andréa, sócias na empreitada, sabiam que não seria nada fácil administrar um teatro em meio a um contexto adverso no que diz respeito tanto às especificidades do quadro no Rio de Janeiro quanto à crescente desvalorização do teatro num século XXI enfeitiçado pelos aparatos tecnológicos. Além disso, não escolheram espaços em shoppings, muitas vezes priorizados pelos espectadores devido à comodidade e à segurança oferecidas, mas marcados, com frequência, por programação repleta de apelos para seduzir de imediato uma ampla faixa de público. Caminharam na contramão e se depararam com uma aprazível casa de rua, em Botafogo. Como se não bastasse, anos depois adquiriram a casa ao lado inaugurando um novo teatro: o Poeirinha.
O Poeira não despontou como um espaço para servir “apenas” de veículo para Marieta Severo e Andréa Beltrão. Elas, claro, vêm realizando espetáculos no teatro, ora em separado (Marieta em Incêndios, Andréa em Jacinta e Antígona), ora juntas (Sonata de Outono, a primeira montagem, e As Centenárias). Mas o Poeira e o Poeirinha logo ganharam destaque na cidade como espaços inclusivos, que receberam, ao longo dos anos, encenações heterogêneas que talvez possam ser vagamente aproximadas pela inquietação artística, e mais cursos, workshops, oficinas e seminários, programação norteada pelas atrizes e pelo diretor Aderbal Freire-Filho. É provável que uma parcela significativa desses trabalhos não conseguisse outro espaço para se apresentar (com exceção do Espaço Sesc, em Copacabana, sempre tomado pela generosa alternância de montagens permanecendo durante curto período em cartaz) ou para dar continuidade à temporada (tendo em vista que o Poeira e o Poeirinha, além das estreias de espetáculos inéditos, se destinam a reestreias de encenações vindas de teatros diversos).
A decisão de inaugurar um teatro não foi instantânea. Marieta Severo e Andréa Beltrão começaram a trabalhar juntas na ótima montagem de Mauro Rasi para o seu próprio texto, A Estrela do Lar, parte de um grupo de peças autobiográficas. Desenvolveram a parceria em A Dona da História, texto escrito e dirigido por João Falcão. Atrizes de gerações diferentes, que construíram percursos também distintos em cima do palco, as duas estabeleceram sintonia em relação à identidade do Poeira. Marieta, desde os anos 1960, vem valorizando consideravelmente a dramaturgia brasileira, a julgar pelas mencionadas peças de Rasi e Falcão e por sua presença em montagens de textos de Gastão Tojeiro (em Sabiá 67, apropriação de Onde Canta o Sabiá?, a cargo de Paulo Afonso Grisolli), Leilah Assumpção (Jorginho, o Machão), Nelson Xavier (O Segredo do Velho Mudo), Martins Pena (As Desgraças de uma Criança, espetáculo de grande sucesso), Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar (autores de Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come, trabalho do Grupo Opinião), Chico Buarque (Ópera do Malandro) e, em especial, a célebre trilogia de Naum Alves de Souza (No Natal a Gente vem te Buscar, Aurora da Minha Vida e Um Beijo, um Abraço, um Aperto de Mão). Não se deve, em todo caso, esquecer de suas incursões por peças estrangeiras, que renderam encenações instigantes – como Amadeus, de Peter Shaffer, Cenas de Outono, de Yukio Mishima, Antígona, de Sófocles, e Torre de Babel, de Fernando Arrabal. Já Andréa começou nos grupos jovens da virada dos anos 1970 para 1980, como Manhas e Manias. Brilhou no humor através de espetáculos saborosos, como O Amigo da Onça, de Chico Caruso e Nani, e enveredou, com habilidade, pelo drama em A Memória da Água, de Shelagh Stephenson, A Prova, de David Auburn, e Como Aprendi a Dirigir um Carro, de Paula Vogel.
Para celebrar os 15 anos do Poeira, Marieta e Andréa optaram por uma exposição. Diante da impossibilidade de Aderbal, por motivos de saúde, assumir a concepção, as atrizes chamaram Bia Lessa. O resultado aponta para um entrosamento entre a trajetória do Poeira e a criatividade de uma diretora que costuma promover, em seus espetáculos, conjugações entre o teatro e outras manifestações, principalmente as artes plásticas. Na visita ao Teatro Poeira, o espectador transita por uma instalação na qual frases de textos, realçadas por todo o espaço, objetos simbólicos e eventuais vozes em off são articulados de maneira não reiterativa. É convidado, nesse sentido, a estabelecer associações próprias, vivenciando momentos de descoberta ao abrir armários e gavetas em áreas do teatro até então inacessíveis (como camarins e coxias). Em determinado estágio da travessia, o visitante chega ao palco e, de lá, assiste à projeção de um vídeo, exibido em telas localizadas no espaço destinado à plateia, no qual Marieta e Andréa falam sobre o vínculo que as une – e deu origem ao teatro – e as interações com os vários artistas que passaram pelo Poeira. Há também menções a encenadores do passado e do presente, responsáveis por declarações em relação ao fazer teatral que continuam pulsantes nos dias de hoje. A itinerância se completa com pequenos registros fotográficos de cada um dos muitos espetáculos que desembarcaram no teatro.
A exposição se estende ao espaço do Poeirinha, com o visitante percorrendo livremente a segunda casa. Pelo foyer, surgem fotos de espetáculos ampliadas e coladas numa estrutura que intencionalmente parece em construção. Ao mesmo tempo em que trazem à tona a fase de obras do teatro, Marieta, Andréa e Bia sublinham a ideia de teatro como algo inacabado, em processo. Lembram que um espetáculo não é uma realização cristalizada e sim um trabalho que muda a cada apresentação, permanecendo sempre em aberto, nunca finalizado. Dentro da sala do Poeirinha, performers peneiram areia sobre placas de metal e revelam imagens sugestivas da intensidade dos encontros entre os artistas.
Marieta Severo e Andréa Beltrão dão prosseguimento à honrosa tradição de atores e atrizes – como Aurimar Rocha (que arrendou o Teatro de Bolso de Silveira Sampaio), Teresa Rachel e Thaïs Portinho, entre alguns exemplos – que mantiveram teatros, ainda que com graus de importância distintos. No caso do Poeira e do Poeirinha, um consistente pensamento artístico vem regendo, no decorrer de todos esses anos, as escolhas das sócias.
Os ingressos podem ser adquiridos gratuitamente pela plataforma Sympla