Possibilidades que nascem da limitação
Na base do projeto de A Valsa de Lili reside um evidente desafio: apresentar um monólogo no qual a personagem/atriz permanece praticamente imóvel. Essa é a situação de Eliana Zagui, que, com a maior parte do corpo imobilizado devido a uma poliomielite mal diagnosticada, vive confinada há décadas numa cama de UTI do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Eliana contou sua trajetória no livro Pulmão de Aço, que norteou a criação dramatúrgica de Aimar Labaki.
A Lili que desponta no palco tem plena consciência de sua impotência frente a uma realidade trágica que a prende a uma cama de hospital e expressa revolta diante desse estado irremediável. Não se deixa, porém, levar por uma visão fatalista de mundo. A história traz à memória do espectador outras jornadas de superação, o que relativiza a originalidade da abordagem, mas Lili adquire individualidade própria.
Além disso, a concepção de Lili como personagem algo solar diante de sua condição física e a contenção de movimentos na interpretação da atriz Debora Duboc, determinada pela considerável interdição corporal da personagem, remetem longinquamente à Winnie, de Dias Felizes, de Samuel Beckett, que se torna cada vez mais otimista à medida que vai sendo tragada pela terra.
Na montagem dirigida por Debora Dubois, em cartaz no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), o ambiente hospitalar é evocado através de luz fria que ganha cor com o aumento da intensidade emocional do depoimento de Lili. Ressignificada, a iluminação de Aline Santini simboliza, por meio de focos espalhados pelo espaço, os amigos que moram no hospital com Lili, formando sua família substituta.
A atriz Debora Duboc surge sentada numa cama disposta verticalmente (cenário e Márcio Vinicius). É como fica do início ao fim do espetáculo relatando ao público o percurso de Lili/Eliana. Essa restrição não inviabiliza o trabalho físico; estimula, isto sim, possibilidades artísticas que nascem da limitação, em especial no que se refere à variação de diferentes modulações vocais.
Em dados instantes, Debora Duboc destaca trechos de texto por meio de um tom de voz contundente, procedimento que sugere influência brechtiana. Sem se desconectar da personagem, a atriz realça uma indignada postura cidadã que tende a suscitar identificação com o espectador, aproximando-o ainda mais da cena e inserindo Lili no dramático panorama social brasileiro.