Uma personagem em inércia ativa

Christiane Tricerri em Sal (Foto: Isadora Tricerri)

A jornada de Ella, conectada a um homem com quem se relacionou e que desapareceu, sugere uma espécie de paradoxo. Se por um lado a determinação em reconstituir aquilo que viveu com ele evidencia uma estagnação, uma dificuldade ou recusa em seguir em frente, por outro a personagem se mantém, de certa forma, em ação ao insistir em seu objetivo, ao verbalizá-lo incessantemente. Uma inércia ativa simbolizada por imagens que atravessam esse trabalho dirigido e interpretado por Christiane Tricerri a partir de dramaturgia de Eugenio Barba escorada no romance de Antonio Tabucchi (Si sta facendo sempre più tardi).

Ella se encontra confinada no espaço limitado de uma banheira, geografia que supostamente contrasta com os frequentes registros de mar. Mas o mar não é mostrado em sua imensidão, e sim enquadrado na tela, como se pudesse ser retido, esforço semelhante ao da personagem, que procura preservar intacto um passado luminoso. Em todo caso, a água do mar permanece em movimento, mesmo que circunscrita às bordas da imagem.

O passado louvado por Ella é, pelo menos em parte, assumido como uma construção de pensamento (“a viagem que não fizemos, mas que imaginamos em detalhes”, afirma). A personagem percebe que sua memória não diz respeito necessariamente a acontecimentos reais. Ao projetar experiências que não ocorreram como se fossem verdadeiras, Ella radicaliza a inevitável ficcionalização do real. O contraponto entre o autêntico e o fabricado surge sintetizado na discrepância entre o azul opaco, mas natural, da água do mar e a tonalidade intensa, mas artificial, do líquido na banheira.

A exposição das lembranças (concretas ou não) é potencializada através do recurso da voz em off, que também remete à evocação do passado. Ella transita pelo terreno movediço, enganoso, da memória, o que não a impede de se revelar diante do espectador, impressão realçada pela transparência dos figurinos. O corpo de Christiane Tricerri é destacado ainda por meio de closes em fragmentos (o elo com o homem começou pelo olhar, relata Ella em dado instante).

Sal traz à tona a eternização da ausência, a impossibilidade de preenchê-la, em escala significativa, através de presenças ilusoriamente substitutas. Esses conteúdos ganham leitura estética personalizada, distante da apresentada no solo da atriz Roberta Carreri – cujo breve depoimento, inclusive, abre a sessão – dirigido por Eugenio Barba. Seja como for, a encenação de Barba/Carreri parece ter norteado o percurso criativo de Tricerri, que fala pausadamente o texto, opção que adquire efeito algo hipnótico.

Onde ver: Reserve seu ingresso na plataforma da Sympla (www.sympla.com.br). Até 12/8.