Contemporâneo e transcendental
Encenações apresentadas anteriormente em teatros ganham novo fôlego durante a pandemia, evidenciando esforços em aproveitar a limitação espacial como proposta de linguagem e em dialogar de maneira direta com o contexto dos dias de hoje. É o caso de Terra em Trânsito, trabalho sintético dirigido por Gerald Thomas realizado, há 15 anos, em conjunto com outra montagem, Rainha Mentira, ambas com a atriz Fabiana Gugli.
A personagem de Terra em Trânsito, uma cantora prestes a entrar em cena numa versão de Tristão e Isolda, se encontra confinada num espaço fechado, um camarim, que, a partir de certo instante, descobre estar trancado. As campainhas indicadoras da proximidade do começo do espetáculo são acionadas, mas ninguém a avisa, percebe a sua presença. Há, como se pode notar, uma crescente suspensão do real que culmina com a fala da personagem: “aqui estamos em plena morte”.
O nonsense é potencializado pelo acesso do espectador a essa espécie de bunker como se fosse um voyeur privilegiado. A câmera, por meio do qual a encenação é virtualmente exibida, surge como o olho do público, porta de entrada a um espaço interditado. No início, a cena desponta como imagem embaçada que logo adquire nitidez, como um espelho que se torna cristalino. Mas esse espelho revela uma visualidade que não se traduz como leitura única. A circunstância descortinada em Terra em Trânsito se abre a variadas possibilidades de apropriação.
Há ainda um afastamento da moldura realista com a presença do interlocutor da personagem, um cisne, em concepção de artificialidade devidamente realçada (voz de Marcos Azevedo e manipulação de Isabela Carvalho), e da quebra da “quarta parede”, nos momentos em que ela se aproxima da câmera e “interage” com o público. O cisne chama a personagem pelo nome da atriz, procedimento que borra a fronteira entre realidade e ficção, elemento relevante no teatro de Gerald Thomas, encenador que costuma escrever seus textos para determinados atores, às vezes mantendo os nomes verdadeiros.
A dramaturgia de Thomas é aberta, criada para o palco, inclusiva em relação aos acontecimentos do mundo. À referência sugerida no título – ao filme Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha –, outras se juntam, ligadas ao teatro do próprio encenador (Um Circo de Rins e Fígados, um de seus espetáculos) e a emergenciais fatos recentes (“vidas negras importam”, invasão ao Capitólio) conectados à gestão de Donald Trump. A situação da cantora aprisionada em seu camarim, ao afirmar que “fui esquecida aqui dentro”, evoca a do mordomo Firs no final de O Jardim das Cerejeiras, uma das grandes peças de Anton Tchekhov, autor de mais um texto, O Canto do Cisne, que suscita elo com esse trabalho. São citações que se misturam e se sobrepõem numa encenação que, apesar do diálogo com o aqui/agora, propõe um acúmulo de tempos.
A noção de acúmulo também diz respeito à questão espacial contida em Terra em Trânsito. A personagem está confinada num camarim. Há, porém, breves menções ao espaço externo (gritos, sons de bombardeio). Se o lado de fora se anuncia como perigoso, algo apocalíptico, o de dentro não parece menos ameaçador, considerando que o espaço interno não se restringe à área geográfica delimitada, mas abarca a subjetividade da personagem, assombrada por uma sensação de pesadelo. Desestabilizada, desorientada, perplexa, ela vive à base de comprimidos que fazem com que sua percepção fique cada vez mais alterada. Sua fala soa acidentada, interrompida, descontinuada, como se mudasse de assunto com frequência. Essas quebras dramáticas – sustentadas em fluxo surpreendente na atuação de Fabiana Gugli – apontam para uma mobilidade constante, já existente no título do espetáculo, mesmo que não se saia necessariamente do lugar.
Ao conjugar passado e presente, realidade e ficção, vida e morte, Gerald Thomas insinua um desejo de confecção de uma obra totalizante, datada na expressão de inquietações contemporâneas e, em contrapartida, atemporal ao transcender seu próprio período histórico.
Transmissão gratuita será pela plataforma digital YouTube, com acesso exclusivo pelo link bit.ly/terraemtransito