Cena despojada para uma personagem em estágio de desapego
Irene Ravache em Alma Despejada (Foto: Divulgação)
A impossibilidade da preservação da atividade teatral durante o período de pandemia tem dado vazão a propostas artísticas distintas: a realização de trabalhos idealizados para a plataforma virtual, a adaptação para as circunstâncias atuais de encenações anteriormente apresentadas em teatros e a concepção de novas montagens em espaços teatrais, mas conferidas pelos espectadores à distância, por meio da ferramenta tecnológica. Alma Despejada se aproxima do segundo caso. A encenação dirigida por Elias Andreato e interpretada por Irene Ravache para o texto de Andréa Bassitt esteve em cartaz em São Paulo e pode ser conferida, no momento, através da plataforma Sympla, graças a uma gravação feita no Teatro Porto Seguro.
Como o trabalho foi conferido em circunstância anterior – uma sessão única, na casa da atriz, dentro da série Teatro #EmCasaComSesc, com transmissão ao vivo pelo YouTube e pelo Instagram -, cabe fazer determinadas observações referentes àquela experiência. Na ocasião, o cenário original do espetáculo ficou reduzido a poucos elementos – livros e uma caveira – dispostos na proximidade da atriz. O despojamento da cena improvisada, em alguma medida, evidenciou sintonia com o processo de desapego da personagem, Teresa, ao observar sua vida em perspectiva. “Na hora do meu despejo, quero levar apenas o essencial”, afirma. Acumuladora no passado, Teresa deixa de atribuir uma conexão afetiva intransferível aos objetos materiais que povoaram a sua trajetória. Não adere, nesse sentido, à nostalgia, mesmo que ocasionalmente louve os anos que ficaram para trás. “Antes tudo era mais bonito”, compara.
De qualquer modo, Teresa vivia numa espécie de redoma de estabilidade, alienada ao que acontecia à sua volta (“Eu não desconfiei; eu desviei”), especialmente no que diz respeito à realidade conjugal. A personagem do texto de Andrea Bassitt pode levar o espectador a lembrar de Nora Helmer, protagonista de Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen, que, a partir de determinado instante, adquire consciência de sua existência no mundo e reivindica independência. Ambas as personagens, Teresa e Nora, se deparam com a ruptura de seus cotidianos acomodados e estáveis e experimentam seus novos momentos como uma libertação. Mas há diferenças estruturais entre as peças: a de Ibsen pertence à dramaturgia realista/naturalista; já a de Bassit se inscreve nessa vertente para, até certo ponto, subvertê-la com a revelação do lugar de onde Teresa relata sua jornada, salpicada por breves menções a fatos reais, como a queda do Muro de Berlim, a escalada da Aids e a eleição de Fernando Collor de Mello.
A suspensão do realismo proposta na peça não implica numa perda de identificação – e, consequentemente, num afastamento – do espectador em relação à cena, aquecida pela interpretação de Irene Ravache. Se por um lado a escassez de recursos da apresentação anterior, em casa, gerou um cerceamento do potencial cênico do espetáculo, por outro essa restrição fez com que as atenções ficassem ainda mais concentradas na atriz, sem eventuais elementos dispersivos ao redor. A frieza da tecnologia – a atriz diante de uma câmera, sem contato direto com os espectadores, ninguém partilhando do mesmo ambiente – contrastou com a qualidade de presença de Irene Ravache, que, por meio da fala, do olhar e de um gestual cotidiano, mas não banal, aproximou a plateia da personagem. A impressão foi a de que a atriz estabeleceu um elo individualizado com o espectador. Seja como for, Irene Ravache faz de Teresa uma personagem concreta, também demonstrando habilidade no desenho de figuras pertencentes ao passado dela, e valoriza as transições do texto.
Alma Despejada é uma escolha coerente dentro do repertório normalmente priorizado por Irene Ravache, voltado para textos que primam por uma comunicação imediata com o público.
Onde assistir: Sympla / Teatro WeDo! Ingressos: R$ 40,00. Até 31/7.