Fragmentos de corpo e tempo
Marat Descartes em Peça (Foto: Gabi Brites)
Ao final de Peça, uma mensagem surge estampada: “esta live é dedicada ao teatro”. A definição de live para esse trabalho de Marat Descartes soa evidentemente simplificadora, na medida em que há aqui uma concepção artística ambiciosa, ao contrário do formato despojado que se tornou frequente nesse período de pandemia (Peça começou a ser ensaiada para entrar em cartaz no teatro e foi deslocada para o meio virtual por força das circunstâncias). Mas talvez haja correspondências, mesmo que longínquas, entre esse trabalho e a live pelo fato de se tratar de uma iniciativa disponibilizada em plataforma virtual e destacar uma necessidade de expressão pessoal do ator, que se mostra bastante “desarmado” na primeira parte da apresentação. A frase também chama atenção para um debate sobre o teatro viável nessa época, desvinculado das características centrais dessa arte – um acontecimento presencial entre atores e espectadores, reunidos dentro de um único espaço.
Esse teatro, mencionado na frase, é passado e futuro – aquilo que existia antes da pandemia e que voltará a existir especialmente depois da chegada da vacina. Peça é um trabalho que caminha por distintas instâncias temporais. Está fincado no presente, com Marat Descartes apresentando-o ao vivo e sinalizando questões do aqui/agora (“Se eu sair das redes sociais, deixo de existir?”); traz à tona momentos diversos do passado – a exposição do nascimento de uma das filhas, em 2009, o canto, ao lado da filha, da música Rosa, de Pixinguinha, que abre e encerra Peça, já durante o isolamento, a lembrança de familiares falecidos, a interpretação de célebres figuras de séculos passados, um febril René Descartes e um racional Jean-Paul Marat, numa interação fantasiosa, tendo em vista que não foram contemporâneos um do outro – por meio do acionamento de vídeos pré-gravados; e suscita inevitáveis projeções para o futuro. O ator manipula o tempo. Congela a imagem, retrocede, exibe-a de modo intencionalmente falho, impreciso.
A conexão com o presente sugere certa crise, que não se restringe ao contexto da pandemia, mas se estende à frustração da ausência irreversível, seja por causa da morte de pessoas próximas, seja devido à impossibilidade de exercer seu ofício presencialmente diante dos espectadores, o que a tecnologia minimiza, sem, contudo, resolver. “Como é ruim não poder te ver de verdade. Só uma imagem, uma lembrança. Não te tocar, nem ser tocado”, diz Marat. Essa sensação, que surge em tom menor, diferentemente da exacerbação que precede esse instante, é manifestada por um misto de ator e personagem. Desponta num momento do trabalho em que a construção já se impôs em relação à atuação transparente que marca toda a parte inicial. O título Peça até contrasta, em algum grau, com a estrutura imperceptível dos primeiros minutos. Marat Descartes lava louça, anda pela casa, avisa à família que começará a apresentação, se isola no banheiro, conta sobre a gênese do projeto – que se chamaria Duchamp, em referência ao ready-made de Marcel Duchamp -, informa sobre a entrada dos colaboradores – a diretora Janaína Leite, voltada para a vertente do teatro documentário, a julgar pelo trabalho de atriz em encenações anteriores, o amigo Nuno Ramos, que fez proposições determinantes –, sem qualquer impostação, sem entonação de representação, distante de uma composição tradicional de personagem. Apesar da impressão de pré-início, a apresentação efetivamente começou.
A mudança de posição (Marat vira-se de costas para a câmera) e a inclusão da trilha sonora (de Natalia Mallo) não anunciam o início da construção do trabalho, mas o momento em que esta fica visível ao espectador. Marat Descartes passa a transitar, de maneira mais assumida, entre o autobiográfico e o ficcional, ainda que esses dois universos não sejam opostos quanto podem parecer a princípio – afinal, a evocação do passado se dá por meio de uma ficcionalização da própria vida e não de uma reconstituição fidedigna, imparcial, de como tudo aconteceu. O ator abre arquivo com fotos familiares, aparece trajado como Jean-Paul Marat e René Descartes numa alusão ao seu nome, sobrepõe imagens e espaços da casa, rompidos a partir do instante em que sai desnorteado pelas ruas de São Paulo numa atmosfera de pesadelo acentuada pela instabilidade da câmera e potencializada pela ameaça de extinção da profissão e do edifício teatral. Narra sua história de modo ocasionalmente dessacralizado, profano, através de fragmentos de seu corpo – destituído, assim, de sua totalidade, de sua integridade, e não reduzido à exposição do rosto, à “imagem oficial”. Um corpo cujas partes surgem recortadas em meio à escuridão, imagens que remetem ao teatro de Samuel Beckett, principalmente a uma de suas peças curtas, Eu Não. “Eu não quero ser eu. Eu não quero ter um corpo”, afirma Marat.
Se Duchamp, por meio do ready-made, afastou o elemento cotidiano de seu caráter utilitário e problematizou o entendimento de arte restrita ao espaço institucionalizado do museu, Marat Descartes, em Peça, também se afasta, mesmo que forçadamente, das características que regem o teatro, sem, porém, deixar de homenageá-lo e realça a importância da arte para além da utilidade imediata no dia a dia.