Um sutil aroma de mudança
Cena de Estado de Sítio, montagem de Gabriel Villela em cartaz até o próximo domingo
O teatro de Gabriel Villela é constantemente abordado a partir da concepção estética que resulta do casamento surpreendente entre os universos das obras escolhidas e o seu mundo particular, do interior de Minas Gerais, materializado por meio de cores vibrantes e natureza artesanal na confecção da cena. Em Estado de Sítio, montagem em cartaz no Teatro Sesc Ginástico até o próximo domingo, é possível reconhecer características artísticas do diretor, mas há nuances significativas, a começar pela preponderância de tons mais soturnos em decorrência do texto do argelino Albert Camus.
Se por um lado o espetáculo impressiona pela construção visual, por outro esta não se sobrepõe ao texto. Villela, inclusive, não camufla o teor verborrágico do original, em tradução de Alcione Araújo e Pedro Hussak. A cenografia, os adereços e os figurinos não se destinam a deslumbrar retinas e a música não é acionada para embalar a apreciação do espectador. Villela valoriza a palavra e demonstra não temer a aridez.
Há uma preocupação em estimular o público a traçar conexões entre um texto composto por personagens alegóricos e a contemporaneidade, em especial no que se refere à prática do autoritarismo, simbolizada pela Peste, que invade a cidade de Cádiz, reivindica o posto do governador e proclama o estado de sítio, momento em que, não por acaso, o teto sobre o palco é rebaixado, de modo a frisar o início de uma fase opressiva, claustrofóbica – o contrário acontecendo com a partida da Peste. Gabriel Villela visa à inclusão da plateia por meio de marcações frontais dos atores, que, em alguns instantes, discursam de frente para o público como se estivessem diante do povo de Cádiz. Não é a primeira vez que o diretor aposta nessa disposição espacial (vale lembrar do recente Rainhas do Orinoco), que potencializa a solenidade da cena e periga torná-la linear.
Villela promove um contraste entre os elos com a realidade que procura suscitar e a apresentação de uma cena estilizada por meio de uma cenografia (de J.C. Serroni) integrada por uma lua-refletor, galhos e árvore seca de estrutura invertida, céu e estrela (a “estrela do tumor”?) tomados por emaranhados de fios. Também chamam atenção os criativos adereços (de Andréia Mariano, Ingrid Oliveira, Marcelo Machado, Naiana Leotti, Priscila Chagas e Tais Santiago), como o guarda-chuva que remete à forma de uma água-viva na abertura e no encerramento da montagem e as máscaras que cobrem os rostos dos atores (maquiagem de Claudinei Hidalgo). O próprio Villela é o responsável por figurinos nos quais imperam tons neutros – em propostas expressivas, como a blusa de retalhos do Nada – que se opõem ao colorido das roupas da Peste e de sua assistente, a Morte. Um misto de estranheza e familiaridade vem à tona na música de Babaya Morais e Marco França.
A afirmação de um teatro que se assume como artifício transparece ainda no registro interpretativo do elenco. Villela evidencia a opção por uma fala declamada. É uma decisão questionável, mas o texto não fica cristalizado, destituído de pulsação. Elias Andreato, como a Peste, mantém um oportuno acento de deboche, sustentado por impactante máscara facial. Claudio Fontana, como a Morte, com o rosto inteiramente maquiado, investe na contundência da palavra. Chico Carvalho, como o Nada, sugere influência clownesca, sem, porém, enveredar pelo lugar-comum dessa vertente. Rosana Stavis conjuga a voz afinada com o pleno domínio do texto. Nábia Vilela acena, de maneira sutil, ao melodrama. Pedro Inoue tem presença intensa transmitida por meio da altivez do corpo e da vivacidade do olhar. Leonardo Ventura, Arthur Faustino, André Hendges, Rogério Romera, Jonatan Harold, Nathan Milléo Gualda e Zé Gui Bueno se mostram sintonizados com a linguagem de Villela.
Com Estado de Sítio, Gabriel Villela confirma sua assinatura, mas ventila alterações em relação a certo padrão esperado em seu teatro, não incorrendo, assim, na mera repetição. Além disso, busca, através de um texto desvinculado do realismo, uma articulação mais concreta e objetiva com o aqui/agora.