Ambição assumida
Luiz Henrique Nogueira, Claudia Abreu, Rodrigo Pandolfo e Leandra Leal em PI – Panorâmica Insana (Foto: João Caldas)
A panorâmica traçada por Bia Lessa se revela aos poucos diante do público. Quando os espectadores entram no Teatro Prudential – Sala Adolpho Bloch, os atores já estão em cena portando identidades diversas, heterogêneas, diferenciadas pelas roupas que trocam de maneira incessante e por composições de vozes distintas. A agilidade com que transitam de um personagem para outro impede que os espectadores retenham na memória cada um deles, em especial a partir do instante em que a velocidade se torna mais acelerada e as identidades se embaralham ainda mais.
No entanto, ao mesmo tempo em que o espetáculo coloca a plateia diante de um vasto painel de identidades descritas muito rapidamente ou sem rosto, como na cena em que os atores dançam com figurinos, há um movimento contrário que tensiona essa proposta, na medida em que personas começam a ser pinçadas do panorama geral. Identidades anônimas e reconhecíveis (Vladimir Herzog, Stuart Angel, o menino sírio Aylan Kurdi) são individualizadas dentro da malha dramatúrgica do espetáculo, formada por textos de André Sant’anna, Jô Bilac e Julia Spadaccini, acrescidos de citações de Franz Kafka e Paul Auster.
A dimensão existencial não é abandonada, a exemplo da mulher que come fezes, interpretada por Leandra Leal. Contudo, o caráter político evidentemente se impõe por meio das referências explícitas ao real, realçadas por falas sobre questões emergenciais, que não são novas, mas se encontram na pauta do dia, como feminicídio e obscurantismo religioso. O ápice se dá quando Claudia Abreu estimula a interação do público, que tende a acontecer de forma algo catártica. Apesar de a atriz quebrar a quarta parede e se relacionar de modo mais direto com a plateia, ela permanece interpretando uma personagem. Fica a impressão de uma espécie de espessura entre uma presença transparente, desarmada, no âmbito da cidadania, e a preservação de uma esfera ficcional.
No jogo proposto em Panorâmica Insana, os atores passam por uma sucessão ininterrupta de personagens, o que inviabiliza a verticalização, a encarnação de individualidades. Ocasionalmente, porém, cada intérprete se debruça sobre identidades específicas. Leandra Leal e Claudia Abreu se destacam nas passagens mencionadas – a primeira projeta apreciável intensidade dramática e a segunda conduz com segurança as interferências do público, em que pese o fato de não serem propriamente imprevisíveis. Luiz Henrique Nogueira demonstra certa dificuldade de distinguir suas intervenções e Rodrigo Pandolfo tem timing preciso na ótima cena final.
No que diz respeito à concepção cênica, a integração entre cenografia (de Bia Lessa) e figurino (de Sylvie Leblanc) sobressai. As roupas, que cobrem o palco, são as que o elenco veste – cada uma sugerindo um dado universo – no decorrer da apresentação. O mar de roupas, que pode suscitar interpretações variadas (campo de batalhas, aterro sanitário), não é exatamente uma imagem inédita na trajetória de Lessa. E o galão de água localizado no meio da cena é um elemento sem justificativa aparente. A iluminação, de Bia Lessa e Guilherme Varela, acompanha as transições emocionais abruptas provocadas pelos textos.
O insano dessa panorâmica reside na determinação em abarcar o Brasil e o mundo, o político e o existencial, o anônimo e o difundido, a realidade dos mais abastados e dos mais fúteis. Soa como ambição desmedida, mas plenamente assumida como base desse espetáculo.