A montagem de Dogville, em cartaz no Teatro Clara Nunes, reúne elenco numeroso, raro no panorama atual (Foto: Renato Mangolin)
O teatro de mercado sofreu um estreitamento nas últimas décadas. As produções voltadas para a valorização do teatro de texto e para a reunião de um elenco numeroso diminuíram. A escassez dos incentivos e a redução de público estão entre os fatores que tornaram mais árdua a tarefa de levantar espetáculos. Passou-se a investir, como saída, em trabalhos concebidos por equipe pequena e em iniciativas calculadas para gerar uma identificação imediata com uma ampla faixa de espectadores, seja pela afinidade temática, seja pela empatia com algum artista carismático.
A mudança no perfil dos espetáculos de mercado fica flagrante na programação dos teatros de shopping, que vêm, há um bom tempo, abrigando produções cada vez mais comerciais ou até mesmo descartáveis. As dimensões normalmente limitadas desses espaços impedem a realização de musicais de grande porte, formato que ainda seduz uma quantidade considerável de espectadores. No entanto, a atual programação da maior parte dos teatros do Shopping da Gávea se diferencia bastante dos espetáculos escapistas.
O Teatro Clara Nunes recebe a encenação de Zé Henrique de Paula para Dogville, transposição cênica do filme de Lars von Trier, dotado de atravessamento teatral, com elenco formado por 16 atores, esforço de produção inegavelmente corajoso nesse início de século XXI. O Teatro dos 4 apresenta O Inoportuno, montagem de Ary Coslov para a peça de Harold Pinter. E o Teatro das Artes traz As Brasas, adaptação do livro de Sandor Marai, sob a condução de Pedro Brício. Duas dessas encenações – Dogville e As Brasas – foram idealizadas pelo produtor Felipe Lima (a segunda em parceria com Duca Rachid), que também está por trás de outro espetáculo “fora do padrão”: o infanto-juvenil Lá Dentro tem Coisa, baseado na obra Partimpim, de Adriana Calcanhoto, em cartaz no Teatro das Artes.
Herson Capri e Genézio de Barros em As Brasas, adaptação de obra de Sandor Marai apresentada no Teatro das Artes (Foto: Leo Aversa)
Ainda que as fontes sejam diversas – oriundas de um filme, de um livro ou do teatro –, os três espetáculos apontam para o destaque ao texto. Propõem ao espectador um contato com a palavra. Defendem a importância da escuta. Numa época marcada pelo vapt-vupt, dois deles (Dogville e O Inoportuno) atingem ou se aproximam da temerosa duração de duas horas – suprimindo, contudo, os intervalos, hoje praticamente restritos aos musicais. Apesar de contarem com atores famosos (Fabio Assunção em Dogville, Herson Capri em As Brasas e Daniel Dantas em O Inoportuno), oferecem desafios ao público.
Dos três espaços, o mais historicamente vinculado a um teatro de mercado consistente é o dos 4, que, entre 1978 e 1993, teve seu palco destinado às produções de Sergio Britto, Mimina Roveda e Paulo Mamede. Nos últimos anos, recebeu uma arriscada encenação de Quem tem medo de Virginia Woolf?, de Edward Albee, com elenco liderado por Zezé Polessa e Daniel Dantas. O Clara Nunes, inaugurado pela cantora com o show Canto da Três Raças, teve programação heterogênea, entre a música, o texto clássico (Rei Lear, em produção do Teatro dos 4), o saudoso besteirol (As Sereias da Zona Sul), a nostálgica burleta (Suburbano Coração) e a identificação sentimental (Uma Relação tão Delicada). Recentemente, após um incêndio, o espaço foi ampliado. Ganhou um mezanino e uma configuração que acena para a realização de musicais, a exemplo de Pippin, em versão da dupla Charles Möeller/Claudio Botelho. O Teatro das Artes, que originalmente era um cinema, transita entre o comercial e a aura de refinamento concentrada em espetáculos como Arte, peça de Yasmina Reza, sob a direção de Mauro Rasi, Memória da Água, encenação de Felipe Hirsch para o texto de Shelagh Stephenson, e Pterodátilos, de Nicky Silver, outra montagem assinada por Hirsch. O Teatro Vannucci se mantém como o espaço menos autoral dos quatro. Em todo caso, recebeu peças de Miguel Falabella, como A Partilha (vinda, porém, do Teatro Candido Mendes, onde estreou), No Coração do Brasil e A Vida Passa.
André Junqueira, Daniel Dantas e Well Aguiar em O Inoportuno, encenação de peça de Harold Pinter no Teatro dos 4 (Foto: Leo Ornelas)
O conjunto atípico de espetáculos que impera, nesse instante, no Shopping da Gávea difere da programação dos outros teatros de shopping no Rio de Janeiro. O Bradesco, no luxuoso Village Mall, na Barra da Tijuca, pelas suas dimensões, mais amplas que as dos demais espaços, abriga produções filiadas ao musical. O Net Rio, no Shopping dos Antiquários, em Copacabana, segue tendência parecida, em que pese o fato de o tamanho distinto do teatro (adaptado do antigo Teatro Tereza Rachel) determinar a apresentação de encenações menos grandiosas, conquistando majoritariamente a plateia da terceira idade. Os do Fashion Mall não firmaram, no decorrer dos anos, perfil muito definido. Sinalizaram certo requinte por meio de montagens como O Desaparecimento do Elefante, transposição de contos de Haruki Murakami, a cargo de Monique Gardenberg, e Gloriosa, comédia amarga de Peter Quilter conduzida pela dupla Möeller/Botelho, característica que se dissolveu com o passar do tempo, dando lugar a empreitadas menos ambiciosas, escoradas, às vezes, em nomes midiáticos. O Miguel Falabella, no Norte Shopping, aposta em produções de alcance popular mais evidente em sintonia com a padronização da cultura oficial ofertada no subúrbio. E o localizado no Bangu Shopping vem insinuando personalidade próxima, funcionando ocasionalmente como pré-estreia de espetáculos antes de desembarcarem no Centro ou na Zona Sul, o que parece expressar que não é considerado como um espaço nobre.