Obra para tempos turbulentos
Ao fazer nova visita a O Rei da Vela, texto que levou ao palco em 1967, o Teatro Oficina busca uma relação de espelhamento perceptível em componentes da montagem atual – cenografia, figurinos, música (em São Paulo havia ainda a presença do ator Renato Borghi, integrante do espetáculo de cinco décadas atrás). Ao mesmo tempo, o Oficina evidencia que o mundo mudou, constatação realçada nas várias referências ao noticiário desse momento destacadas ao longo da encenação, em cartaz até o próximo domingo na Cidade das Artes.
As conjunturas ligadas ao texto – escrito por Oswald de Andrade em 1933, sob influência da crise de 1929 – e à primeira e emblemática montagem do Oficina – às vésperas do acirramento da ditadura militar – são diferentes. O contexto da encenação anterior e o do espetáculo de 2018 também são distintos. A necessidade de firmar postura de oposição direta ao regime despótico em vigor nos anos 60 determinou uma guinada dentro do Oficina por meio de espetáculos que assumiram a identidade de atos (te-ato) contundentes, concebidos com o intuito de desestabilizar o espectador, de despertá-lo fisicamente para a repressão radicalizada com o AI-5.
Se nos seus anos iniciais, o Oficina valorizou o texto e o ator através da difusão do realismo stanislavskiano, a partir de O Rei da Vela a companhia incluiu o público de maneira ativa, suprimiu, em grau considerável, as barreiras teatrais – entre montagem e plateia, ator e personagem – e enveredou por uma dramaturgia mais aberta, menos demarcada por início, meio e fim tradicionais. Além disso, O Rei da Vela integrou o Tropicalismo juntamente com outras manifestações artísticas (os festivais da TV Record, o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha).
A versão 2018 de O Rei da Vela parece visar à comemoração de datas (50 anos da primeira montagem, 60 anos de fundação do Teatro Oficina) e à reação a um instante político diverso do da década de 60, mas inflamado. É um espetáculo que diverge de boa parte dos realizados pelo Oficina desde a reabertura do espaço, no início da década de 90, tendo em vista que é apresentado em disposição frontal (pelo menos, na configuração em que desembarcou no Rio de Janeiro), distante do formato de palco passarela do teatro da Rua Jaceguai que a companhia costuma reproduzir em suas viagens, e menos orgiástico/carnavalizado.
Apesar da inegável importância, tanto na história quanto na contemporaneidade do teatro, o Oficina deixa expostas algumas fragilidades nessa montagem de O Rei da Vela. Por mais que a peça tenha sido escrita e encenada, no decorrer do tempo, sob a motivação de acontecimentos turbulentos, a inserção de fatos da vida pública brasileira não se impõe como operação dramatúrgica consistente. Se no primeiro ato a ação concentrada chega ao palco com vigor, a partir do segundo ato há notada queda de ritmo, o que faz com que a cena se torne atravessada por tempos mortos. O modo como o público é envolvido no espetáculo, seja em breves extravasamentos do espaço do palco para o da plateia, seja pela repetição do movimento de acende/apaga da iluminação, soa pouco inspirado. Existem desníveis no elenco – por mais que Marcelo Drummond tenha superado limitações técnicas, a interpretação de Sylvia Prado, numa instigante composição de Heloísa de Lesbos, sobressai entre as demais. A atuação do libertário Zé Celso como Dona Poloquinha não ultrapassa a esfera da curiosidade de ver o encenador numa personagem retrógrada que simboliza exatamente o seu oposto.
As restrições relativizam, mas não anulam, a relevância da montagem, cuja apreciação foi enriquecida pela exibição – no Estação Botafogo, na última segunda-feira – do filme O Rei da Vela, dirigido por Noilton Nunes e Zé Celso, um projeto gestado no início dos anos 70, antes, portanto, do encenador partir para o exílio, e só concluído no começo da década de 80.