Distâncias suprimidas
Indira Nascimento e Danilo Ferreira em O Jornal, montagem em cartaz no Teatro Poeira (Foto: Ana Branco)
Logo que o espectador entra no Teatro Poeira, antes da apresentação propriamente começar, os atores já estão no palco delimitando o círculo onde transcorrerá a ação de O Jornal, montagem dirigida por Kiko Mascarenhas (com codireção de Lázaro Ramos) para a peça de Chris Urch. O espetáculo inicia com uma breve quebra da quarta parede, realizada com o intuito de cumprimentar o público. No decorrer da sessão, os atores permanecem nas laterais do espaço quando seus personagens saem de cena. Em dados momentos, Joe, o irmão mais velho da história, que tenta se afirmar como pastor, faz sua pregação diante dos espectadores, colocados na posição de fiéis de sua igreja.
Todos esses procedimentos lembram o público de que está assistindo a uma representação. Mas essa consciência acerca do ato teatral não tende a esfriar a apreciação, provavelmente devido à contundência da peça de Urch, em tradução de Diego Teza, que, à medida que avança, frisa fala humanitária contra a intolerância, a discriminação. Se, por um lado, a evidenciação de uma mensagem restringe o mérito artístico da obra por diminuir a possibilidade de apreensão subjetiva por parte do espectador, por outro a relevância dos conteúdos abordados é indiscutível. Escorado em fatos reais – referentes ao The Rolling Stone, jornal de Kampala, Uganda, publicado entre agosto e novembro de 2010, propondo o linchamento de (supostos) homossexuais –, Urch mostra as jornadas de três irmãos após a morte do pai: Joe, que ambiciona ocupar o lugar de liderança religiosa da comunidade; Wummie, confrontada com o preconceito sofrido pelas mulheres, que muitas vezes são obrigadas a abortar projetos de independência e aprimoramento; e Dembe, que se apaixona por Sam, vínculo proibido que ambos vivenciam na clandestinidade até se tornarem alvos das denúncias estampadas no jornal.
As criações que compõem a encenação oscilam entre os extremos de opressão e liberdade. A ação acontece em área previamente demarcada, circular, que acentua a sensação de claustrofobia, reforçada pelas constantes menções ao calor imperante, em especial, nos espaços fechados. As cenas são ocasionalmente ambientadas em locais que rompem, em certo grau, com o confinamento geográfico e existencial dos personagens, como o lago, onde Dembe e Sam se encontram, e o apartamento do segundo. Um barco e cubos de madeira integram o sintético cenário de Mauro Vicente Ferreira. Paulo Cesar Medeiros realça a atmosfera de repressão por meio de uma luz intencionalmente dura, que destaca as bordas dos espaços onde os personagens estabelecem embates cada vez mais passionais. Mas contrasta com instantes em que rompe com esses limites ao sugerir o poético, a chance, ainda que reduzida, de expressão pessoal, por meio de luz quente e mais sutil. Os figurinos de Tereza Nabuco trazem à tona a ideia de massificação (na peça, a lavagem cerebral que leva a atitudes reacionárias) através do emprego do cinza, relativizado pela camisa exuberante de Dembe. A trilha de Wladimir Pinheiro valoriza sonoridade coral que insinua a união apenas aparente dos personagens, desarticulados, na verdade, diante do impedimento de conduzirem suas vidas com autonomia.
O elenco demonstra considerável dose de entrega na interpretação de personagens que sintetizam tanto a determinação em perpetuar, com violência, o atraso quanto a ânsia pelo extravasamento, pela libertação. Mesmo que as atrizes revelem trabalhos mais precisos que os atores, essa diferença não chega a se constituir como um desnível significativo. Heloisa Jorge se vale de seu domínio do sotaque angolano e imprime apreciável autoridade interpretativa como Mama, que não mede esforços para sustentar influência dentro da comunidade. Indira Nascimento, apesar de eventualmente exagerar nas reações nas cenas de maior voltagem dramática, projeta com intensidade os conflitos atravessados por Wummie. Marcella Gobatti preenche, de forma expressiva, o silêncio traumático de Naome. Danilo Ferreira administra a angústia de Dembe, dividido entre o clima de sedução com Sam – personagem estrangeiro de Marcos Guian, que simboliza arejamento em meio a um mundo punitivo – e o crescente temor pela exposição pública de sua sexualidade. André Luiz Miranda procura transmitir a voz de comando de Joe. A direção de movimento de José Carlos Arandiba (Zebrinha) potencializa algumas passagens.
A montagem de O Jornal parece concebida no sentido de suprimir distâncias em relação ao espectador e deve sensibilizá-lo pela importância das questões, descortinadas em encenação instigante.