No teatro como na vida
Felipe Rocha e Veronica Debom em O Abacaxi, montagem dirigida por Debora Lamm (Foto: Aline Macedo)
O Abacaxi, montagem de Debora Lamm para o texto de Veronica Debom (acumulando a função de atriz) que encerra temporada hoje no Espaço Cultural Sergio Porto, tende a suscitar certa identificação no espectador pelo universo temático: a reconfiguração dos vínculos amorosos. Debom reúne diversas situações conjugais – a esposa insegura ao ver o marido beijando homens durante o Carnaval, o marido insatisfeito diante da fidelidade da esposa, a discussão entre dois vértices de um triângulo amoroso sobre o terceiro, o extravasamento da esposa frente à confissão do marido sobre seus encontros com outras mulheres – que apontam para o afastamento do modelo monogâmico nas relações afetivas (questão realçada em Fora da Caixa, espetáculo de Ivan Sugahara em cartaz na Sede das Cias.). Mais do que isso, sinalizam descompasso entre o campo racional e o emocional, entre teoria e prática, e a dificuldade de lidar com acordos amorosos apartados do convencional. Não significa que a autora defenda um resgate do tradicional. Descortina um panorama, sem enveredar exatamente por uma tomada de partido.
Os episódios cotidianos podem levar o público a se projetar na cena, mas Debora Lamm aposta em mecanismos de interrupção da ilusão. A própria dramaturgia, composta por conjunturas distintas vivenciadas por personagens diferentes, sugere esse caminho. O espectador não tem, portanto, a possibilidade de se amalgamar a um único personagem do início ao fim da sessão. A conexão é constantemente abortada para dar lugar a uma nova circunstância. A diretora acentua os procedimentos que inviabilizam o estabelecimento de uma ligação passiva da plateia com a cena ao investir na quebra da quarta parede e fazer com que os atores se refiram aos espectadores (indicação talvez já presente no plano da dramaturgia), que, dessa forma, são lembrados de que integram um acontecimento teatral. Assim, O Abacaxi se assume como teatro, como jogo, como algo que acaba. Mas não há contraste com a vida, seja porque esta também inevitavelmente acaba, seja porque os espectadores são atores de si mesmos – na medida em que representam no dia a dia.
A sensação de estranhamento é potencializada pela cenografia de Mina Quental, que dispõe objetos domésticos de maneira inusitada, e pela direção de movimento de Alice Ripoll, que surpreende tanto por não demarcar necessariamente a passagem de uma história para outra (não é empregada como um mero recurso de transição) quanto pela proposital ausência de glamour nas “coreografias” (cabe destacar a do primeiro casal). Felipe Rocha e Veronica Debom evidenciam sintonia com a proposta da montagem – ele demonstrando um pouco mais de fluência na articulação entre a esfera ficcional e a interação com a plateia e ela um pouco mais engajada na vivência das situações – e Rafael Rocha, diretor musical, se impõe em cena em registro discreto e ocasionalmente divertido.
Apesar de o texto soar, vez por outra, desgastado ao ambicionar um tom de comédia mais aberta – em especial, no momento em que a esposa estimula o marido a contar sobre eventuais elos extraconjugais e reage com passionalidade à revelação –, a encenação adquire frescor ao buscar distanciamento para abordar envolvimentos sem que essa opção implique em frieza no modo como se apresenta ao público. A exposição da estrutura da dramaturgia e do espetáculo não impede que o espectador seja contagiado.