Gustavo Vaz e Armando Babaioff em Tom na Fazenda (Foto: José Limongi)
Se você me tocar, eu te mato.
(Antoine em Apenas o Fim do Mundo, de Jean-Luc Lagarce)
Logo no início da montagem de Tom na Fazenda, texto do canadense Michel Marc Bouchard, o protagonista descreve uma espacialidade que o espectador não vê. Coberto por uma lona – que está dobrada no momento em que o público entra no teatro do Oi Futuro/Flamengo e é esticada por Agatha e Francis, mãe e filho, como uma atividade cotidiana de trabalho –, o palco reúne poucos elementos (barro, transformado em lama no decorrer do espetáculo, e baldes), integrantes da cenografia de Aurora dos Campos. Apesar de sinalizarem o meio onde a história se desenrola (uma fazenda isolada), esses componentes de uma cena assumidamente sintética não são dispostos com o intuito de apenas reconstituir os ambientes rústicos, e sim com o de intensificar a força primitiva que move os personagens. A lama, na qual todos chafurdam durante a apresentação, diz respeito, em esfera localizada, à área rural, mas, em perspectiva abrangente, ao terreno pantanoso da intimidade – mais exatamente, da ausência dela nas relações, pelo menos no começo da peça.
A aridez impera na natureza que cerca a propriedade onde o namorado de Tom será velado e se manifesta no bloqueio dos personagens para externar afeto. Ao surgir para a cerimônia, Tom descobre que Agatha, a mãe do namorado, não sabia sobre a sua existência e nem sobre a homossexualidade do filho devido à determinação de Francis, irmão do morto, de ocultar a verdade. Não por acaso, Francis recebe Tom com violência. Mas a dinâmica do contato entre ambos – coração da peça – se altera, ainda que a ameaça continue pairando como uma sombra constante. Francis impede Tom de ir embora da fazenda para dar credibilidade à farsa que arma para enganar/proteger a mãe. De um dado instante em diante, contudo, a permanência se torna um desejo. Representante de uma urbanidade feérica, com a qual se identifica, Tom se depara com um panorama seco, mas, em contrapartida, fértil, a exemplo de sua reação catártica ao participar do parto de um bezerro. Bouchard valoriza contrastes – entre dois universos, o yuppie, de Tom, e o rude, de Agatha e Francis (oposição sublinhada nos figurinos de Bruno Perlatto), e entre o elo de Tom com a fazenda, na hora em que chega e dias depois. Esse jogo de contrários, porém, não resume tudo. A solidez do vínculo entre Tom e o namorado (em que pese o confronto do personagem-título com lances até então desconhecidos) falta justamente naqueles que lidam com a vida de maneira mais prática e concreta – Agatha e Francis.
Quando Tom chega à fazenda, todos transitam por frequências distintas, como se não conseguissem encontrar denominador comum para uma troca minimamente fluente. As conversas são acidentadas, repletas de mal entendidos. Deslocado, Tom mergulha em diálogo interior e com o namorado morto. Agatha e Francis, apesar de pertencerem a mundo semelhante, não se mostram muito mais próximos um do outro. Há algo cristalizado entre eles, impressão confirmada na passagem em que Agatha comenta que não consegue abraçá-lo. Francis, por sua vez, evidencia obsessão em relação à mãe ao não medir esforços para esconder a realidade. A entrada de uma suposta namorada do rapaz falecido, com limitações para se colocar devido à circunstância postiça e à barreira da língua, acentua a incomunicabilidade – emocional, sobretudo – entre os personagens.
A interação verdadeira se estabelece, aos poucos, na convivência entre Tom e Francis, mesmo que a violência, mecanismo empregado como defesa da intimidade, ainda predomine. A intimidade entre os dois soa ríspida, áspera, mas eventualmente terna. É emblemática a cena em que Tom, deitado na cama de Francis, acaricia o rosto dele e avisa: “você me diz quando parar” – a frase dita por Francis a Tom enquanto o sufocava, momentos antes. Talvez haja uma articulação entre (o risco da) morte e (o medo da) intimidade. A desestabilização, a derrocada de uma postura de vida rígida, impenetrável, parece ligada à crescente proximidade dos corpos, valendo citar a cena de dança que culmina no beijo entre ambos. À medida que avança, o espetáculo de Rodrigo Portella se distancia da assepsia, a julgar pelas menções ou situações envolvendo saliva, sangue, suor, esperma e urina. A intimidade se estende aos espectadores, no modo como Tom, no encerramento, narra os acontecimentos.
A dramaturgia de Tom na Fazenda remete a Apenas o Fim do Mundo, peça do francês Jean-Luc Lagarce, autor da geração de Bouchard. Nos dois textos, a perda de intimidade – refletida nas visitas cada vez menos frequentes dos personagens às famílias – não se traduz como desconexão. Há o peso do não-dito, dos sentimentos que, reprimidos ao longo do tempo, levam a instantes de extravasamento, em especial entre os personagens masculinos (Louis e Antoine em Apenas o Fim do Mundo, Tom e Francis em Tom na Fazenda). A dificuldade de falar diretamente é comprovada no costume adquirido por Louis, protagonista da peça de Lagarce, de enviar postais lacunares e nas confidências do namorado de Tom escritas em cadernos lidos tardiamente por Agatha. Na estruturação dos textos, a reduzida integração entre os personagens é perceptível – em Lagarce, nos diálogos interrompidos e nos solilóquios, e em Bouchard, na escassa disponibilidade para a escuta.
Os personagens empreendem viagens reais e metafóricas, nas quais a morte desponta como companhia onipresente. Os autores abordam mortes na juventude – a do namorado de Tom, sempre referido (“Não se morre aos 25 anos”, afirma Agatha, inconformada), no texto de Bouchard, e a de Louis, na peça de Lagarce, que, sabendo-se condenado, realiza sua última visita à família e evoca a época, provavelmente durante a infância, em que acreditava que ninguém sobreviveria à sua morte. No prólogo e no epílogo, Louis anuncia ao leitor/espectador a sua morte, enquanto Tom narra ao final o desdobramento de fatos que o incluem.
Em Tom na Fazenda, os personagens estão comprometidos com os acontecimentos, até quando fora do foco da ação. Rodrigo Portella mantém o elenco em cena (com exceção de Camila Nhary, que entra mais adiante) nos momentos em que seus personagens não participam da história. Os atores ficam atrás de pilastras, mas visíveis ao público. Conduzindo peça marcada por sucessão de embates, o diretor encaminha os atores para um registro visceral, realçado pela preparação corporal de Lu Brites, pela coreografia de Toni Rodrigues, pela oscilação entre a instauração de uma atmosfera sinistra e interferências mais explícitas da direção musical de Marcello H e pelos ocasionais contrapontos da iluminação de Tomás Ribas, fiel, na maior parte do tempo, a uma paleta de cores. Armando Babaioff expressa no corpo a fragilidade de Tom. Demonstra preocupação com o acabamento de uma atuação em que o gesto potencializa a palavra. Dimensiona o texto interior no instante em que Tom, ao aderir à farsa arquitetada por Francis, se revela através de uma situação inventada. Em plano mais amplo, essa circunstância ficcional pode ser associada ao trabalho do ator, no qual o mais importante não está na própria fala, mas naquilo que a preenche. Gustavo Vaz quebra, por meio da voz, com o desenho tradicional do personagem explosivo. Na passagem em que Francis lembra de uma reação selvagem, o ator evita a contundência previsível e transmite a vulnerabilidade, a insegurança de um personagem aparentemente tão assertivo. Kelzy Ecard projeta o gradativo processo de conscientização da mãe, que culmina na fala que concentra uma série de perguntas sem respostas. Camila Nhary imprime certa dose de exuberância à falsa namorada.
A montagem de Tom na Fazenda resulta de uma leitura personalizada da peça de Bouchard, mas não impositiva em relação ao texto. Sem propor uma desconstrução do original, mas também sem se contentar tão-somente com a apresentação do enredo, o espetáculo de Rodrigo Portella, a partir da sintonia entre as criações constitutivas da cena, traz à tona o sumo da peça.