Julio Maciel, Teuda Bara, Paulo André, Lydia Del Picchia, Eduardo Moreira e Antonio Edson em Nós (Foto: Guto Muniz)
Num tempo como o atual, tomado por embates constantes, o Galpão ousa ao apostar na potência do coletivo. Fundado em Belo Horizonte, em 1982, o grupo continua sua trajetória, tanto perpetuando antigas parcerias quanto firmando outras. Sem a formatação tradicional que define muitas companhias (um encenador e alguns atores), o Galpão nunca contou com um diretor fixo, mas travou vínculos importantes, a exemplo dos estabelecidos com Gabriel Villela – nas montagens de Romeu e Julieta, de William Shakespeare, A Rua da Amargura – 14 Passos Lacrimosos sobre a Vida de Jesus, inspirado em O Mártir do Calvário, de Eduardo Garrido, e, mais recentemente, Os Gigantes da Montanha, de Luigi Pirandello – e Paulo José – nos espetáculos O Inspetor Geral, de Nikolai Gogol, e Um Homem é um Homem, de Bertolt Brecht.
A sobrevivência do Galpão ao longo de mais de três décadas coloca o grupo numa certa posição de resistência frente ao contexto da cena contemporânea, na medida em que as companhias de porte médio tendem a sucumbir diante dos obstáculos crescentes (fenômeno que já ocorreu com as grandes). A preparação de uma sopa simboliza o projeto conjunto, que, porém, não é executado harmoniosamente. O jogo de repetições contido na dramaturgia (a cargo do diretor Marcio Abreu e do ator Eduardo Moreira) evidencia o cansaço nas relações, fragilizadas por ânimos cada vez mais exaltados. Não por acaso, a atriz Teuda Bara diz o solilóquio do veneno de Gota D’Água, peça de Chico Buarque e Paulo Pontes, redimensionando a sopa como “uma baba, grossa e escura”.
O fato de se impor como exceção no panorama artístico não torna, portanto, o grupo menos sensível à crise. Por meio de Nós, em cartaz no Teatro Sesc Ginástico, o Galpão aborda a dificuldade de permanecer unido nos dias de hoje. Na dramaturgia, Teuda Bara é o elemento que quase todos discriminam e, ao final, em contrapartida, desejam reintegrar, mas de maneira igualmente extremista, radical. Em esfera mais ampla, a companhia externa angústia – ou, pelo menos, dúvida – acerca do presente. O grupo dá a impressão de se perguntar como seguir, tendo em vista as tragédias diárias que assolam o mundo, qual o sentido de fazer teatro quando a gravidade dos acontecimentos parece pedir ações urgentes, contundentes.
Marcio Abreu assina um espetáculo desestabilizador, que pulsa diante do público – parte dele disposto bem próximo à cena, em cima do palco (os demais espectadores são acomodados no balcão do Sesc Ginástico porque a estrutura cenográfica de Marcelo Alvarenga – Play Arquitetura – inviabiliza a visão dos lugares da plateia). Uma encenação gestada no calor da hora, sem o auxílio do distanciamento histórico. Mas para falar sobre o presente, Abreu e Moreira recorreram a referências, como Crime e Castigo, de F. Dostoievski, e a dramaturgia de Anton Tchekhov, autor que captou fase de transição, entre uma ordem de valores que começa a sinalizar desgaste e uma nova que surge no horizonte, apesar de ainda não ter se fortalecido. Mesmo afastado da linha de textos priorizada pela companhia até então, Tchekhov foi escolhido pelo Galpão nos últimos anos por meio dos espetáculos Tio Vânia (Aos que Vierem Depois de Nós) e Eclipse. A conexão com o aqui/agora, contudo, não leva o grupo a desprezar as exigências de uma construção cênica mais sólida.
O elo com o instante imediato também desponta na atuação de Teuda Bara, que reage às situações como se estivesse vivenciando-as no momento exato da cena. Os outros atores (Antonio Edson, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira, Julio Maciel, Lydia Del Picchia e Paulo André), em plano menos realçado, demonstram plena adesão à proposta. A mencionada cenografia – que lembra, a partir de dado ponto, a concepção de Oxigênio, de Ivan Viripaev, uma das montagens de Marcio Abreu dentro da Companhia Brasileira de Teatro – e a iluminação de Nadja Naira – expressiva nas passagens mais crepusculares – são componentes determinantes desse espetáculo inquietante.