Releitura sem submissão ao texto
Alejandro Claveaux e Laila Garin: Jasão e Joana (Foto: Silvana Marques)
Chico Buarque e Paulo Pontes criaram, em Gota D’Água, uma obra própria a partir de Medeia, tragédia de Eurípedes centrada na fúria da personagem-título, que, depois de fugir de sua pátria, é abandonada por Jasão, decidido a se casar com uma mulher mais jovem e rica. Os autores da peça brasileira não se limitaram a investir numa aclimatação para o país e numa alteração geográfica – a história ganha nova ambientação, num conjunto habitacional –, a julgar pelo alto nível poético das canções e do texto, até hoje lembrado pela encenação de 1975, conduzida por Gianni Ratto e protagonizada por Bibi Ferreira.
Se Buarque e Pontes realizaram uma operação dramatúrgica, partindo de um texto para conceber outro, Rafael Gomes, diretor da montagem que encerrou temporada no Teatro Net Rio, revela transposição autoral do papel para o palco. Os meios são diferentes, mas não se deve esquecer a ampliação do conceito de dramaturgia, que passou a dizer respeito aos componentes da cena (ator, cenografia, figurino, iluminação, trilha sonora) e não mais tão-somente às páginas da peça de teatro. O fato é que Gomes também frisa o desejo de imprimir uma versão singular através de proposições diversas. Ainda que o resultado de alguns procedimentos seja, em certa medida, questionável, a determinação em apresentar uma visão inquieta se impõe como elemento mais importante dessa empreitada.
Rafael Gomes introduz outras músicas de Chico Buarque, às vezes, de forma evidente em relação aos momentos do texto. Reveste conhecido solilóquio de movimentos coreografados e transição cenográfica sem conseguir evitar a perda de potência do trecho da peça. Há, porém, criações mais bem-sucedidas, como as imagens dos corpos que se equilibram em posições que tendem a gerar desequilíbrio e as escolhas de duas cadeiras pequenas para simbolizar os filhos de Joana e Jasão. Responsável pela adaptação do texto, Gomes manteve apenas os protagonistas, cortando os demais personagens, radicalização sintetizada na inclusão do termo a seco no título do espetáculo.
Laila Garin confirma, por meio dessa interpretação de Joana, a extensão de seus recursos, tanto no que se refere às exigências específicas do musical quanto à construção minuciosa de personagens multifacetadas (qualidade perceptível anteriormente na montagem de O Beijo no Asfalto). A atriz projeta a intensidade de Joana, mas sem que a catarse emocional ameace o controle de sua presença em cena, unifique as modulações da personagem. Alejandro Claveaux, em que pese o descompasso vocal com Garin, surge como um Jasão sanguíneo, pulsante, valorizando as motivações por meio de uma atuação colorida, repleta de tonalidades variadas.
A disposição para dialogar com o texto, de modo a redimensioná-lo, sobressai nas contribuições que integram o espetáculo, em especial na cenografia de André Cortez, que, ao mesmo tempo em que evoca a espacialidade do conjunto habitacional, desponta como uma estrutura abstrata, constantemente manipulada pelos atores no decorrer da encenação. Os figurinos de Kika Lopes se destacam pelo expressivo uso da cauda da saia de Joana. A iluminação de Wagner Antônio é mais inspirada nos instantes crepusculares do que ao reiterar, por meio de luz fria, dura, a revolta de Jasão. A direção musical de Pedro Luís – bem amparada por Antonia Adnet, Dudu Oliveira, Elcio Cáfaro, Marcelo Muller e Pedro Silveira – escapa do mecanismo óbvio de externar sentimentos através de canções graças à inserção de pedaços de falas entre as músicas e à sonoridade inesperada.
Gota D’Água (a Seco) demonstra a coragem de Rafael Gomes para trabalhar, sem subserviência, a partir de obras consagradas, como a recente encenação de Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams.