Mariana Lima, Fernando Eiras, Debora Bloch e Emílio de Mello em Os Realistas, montagem de Guilherme Weber (Foto: Leo Aversa)
O título da peça de Will Eno (The Realistic Joneses, que, na tradução brasileira de Ursula e Erica de Almeida Rego Migon, foi resumido para Os Realistas) traz imediatamente à tona uma perspectiva histórica. Remete à corrente teatral da segunda metade do século XIX, liderada por encenadores como André Antoine e Constantin Stanislavski. Calcada na ambição de reproduzir no palco uma fatia do mundo real com o máximo de fidelidade possível, a vertente realista visa a suscitar uma identificação direta do público com o universo descortinado no espetáculo a que assiste. O espectador deve se sentir espelhado em cena. Para tanto, é importante que ocorra um apagamento do ato teatral, uma ocultação da construção da cena. A de Stanislavski ficou conhecida como ateliê de minúcias – expressão que intitula o capítulo sobre o encenador no livro de Angelo Ripellino, O Truque e a Alma (Perspectiva, 1996) – devido à quantidade de detalhes inseridos em decorrência da obsessão de fazer com que o teatro se assemelhe à vida.
Entre os grandes autores considerados como realistas estão os europeus Henrik Ibsen, August Strindberg e Anton Tchekhov; e os americanos Eugene O’Neill, Tennessee Williams e Arthur Miller. Mas a classificação é reducionista ao defender uma espécie de equivalência para dramaturgos bem distintos. Ibsen e Strindberg assinaram, inclusive, textos que não podem ser chamados de realistas. E a dramaturgia de Tchekhov não se amolda com exatidão a essa corrente, tendo em vista que o autor reuniu personagens que não interagem de fato, apesar da forma dialógica.
Há talvez uma proximidade entre Os Realistas, de Will Eno, e a obra de Tchekhov. Ao se debruçar sobre o cotidiano de dois casais, Eno ressalta a crise de comunicação entre eles e prioriza a ação interna em detrimento da externa, característica muito comentada em relação ao teatro de Tchekhov, abrindo mão de uma trama propriamente dita, pelo menos no entendimento convencional do termo. Os dois casais do texto possuem perfis bastante diferentes. José e Pônei se valem da euforia como mecanismo de disfarce. Ela conserva uma visão idealizada do marido: afirma que José não mente, mas, ao longo do texto, a falta de transparência entre ambos é realçada. Assombrada pelo vazio e pelo tédio, Pônei expressa vontade de desenvolver atividades, sem, contudo, levar o plano adiante. Já a saúde frágil de João, que potencializa sua personalidade ranzinza, norteia o casamento com Júlia. Em comum entre os dois casais, além do mesmo sobrenome, há a solidão. Pônei assume o medo de que José desapareça repentinamente. Oprimida por João, Júlia dimensiona seu desamparo (bem como a necessidade de paz) ao sinalizar desejo de ser deixada no escuro, e, principalmente, o dos seres humanos ao abordar, diante do marido, a solidão da morte. Nesse sentido, Júlia retira João de um lugar absoluto, de comando, e o iguala ao restante da humanidade.
Os Realistas é um texto composto por lacunas, ausências, instantes de suspensão – não tão preenchidos de significados, porém, quanto Will Eno supõe. Seja como for, o autor mais problematiza do que adere às plataformas tradicionalmente realistas, “posição” reforçada por Guilherme Weber, diretor da montagem em cartaz no Teatro Poeira, a julgar pela concepção da cena (cenário e iluminação). A cenografia de Daniela Thomas e Camila Schmidt tensiona a construção realista ao destacar elementos (geladeira, cadeiras) representativos de espaços (quintal, cozinha, supermercado) que não são separados por paredes delimitadoras e um telão para sugerir uma paisagem natural evidentemente artificializada. O telão não se impõe como barreira. É uma parede, mas relativizada, na medida em que se torna transparente dependendo do modo como a luz incide. A evocação da natureza não se restringe ao telão. Ganha o palco através de troncos suspensos que dão a impressão de uma floresta invertida. A iluminação de Beto Bruel expande as tonalidades intensas em determinadas passagens, como a do concurso de balonismo, afastando-se, assim, da “mera” reconstituição do real. E acentua a sensação de opressão por meio da luz rebaixada na cena ambientada no supermercado. Os figurinos de Ticiana Passos são mais contrastantes para os personagens femininos do que para os masculinos.
Os atores minimizam, em boa dose, certa esterilidade do texto. Emílio de Mello demonstra domínio da estrutura dramatúrgica, em especial no que diz respeito às colocações que soam intencionalmente interrompidas, a exemplo da cena no supermercado, e revela a consistência do personagem ao não se limitar ao seu caráter expansivo. Debora Bloch transita com habilidade por estados emocionais diversos, evitando a previsibilidade. Mariana Lima imprime discrição própria à personagem e também surpreende ao valorizar o humor, como no momento da catarse. Fernando Eiras carrega mais na composição vocal e se mostra linear, ainda que o personagem sofra alguma alteração ao final.
Os Realistas tende a instigar o espectador mais pelas proposições da encenação do que pelo texto, por mais que Guilherme Weber (aqui acumulando a adaptação do original e a trilha sonora) tenha adquirido intimidade com a dramaturgia de Will Eno, tanto nos espetáculos da Sutil Cia., casos de Temporada de Gripe e Thom Pain/Lady Grey, quanto no realizado fora do grupo, como Ah, a Humanidade! E Outras Boas Intenções.
Texto publicado no site www.teatrojornal.com.br