Eles não usam Tênis Naique, montagem da Cia. Marginal, em cartaz no Teatro Glauce Rocha até o próximo domingo (Foto: Renato Mangolin)
Eles não usam Tênis Naique, título do texto de Marcia Zanelatto, remete diretamente a Eles não usam Black-Tie, peça de Gianfrancesco Guarnieri, cuja encenação, em 1958, a cargo do diretor José Renato, permitiu a continuidade das atividades do Teatro de Arena. Além das conexões entre os originais de Guarnieri e Zanelatto, há outra ligação possível de ser feita – entre as plataformas do Arena e a natureza da Ocupação Grandes Minorias, no Teatro Glauce Rocha, idealizada por Zanelatto –, guardadas, óbvio, as proporções.
Fundado em 1953, o Arena adquiriu perfil próprio com a conquista da sede, na Rua Teodoro Baima, em 1954, e a entrada de integrantes do Teatro Paulista do Estudante, em 1955. Estes dois dados informam acerca das principais propostas do Arena. No que se refere ao espaço físico, a disposição da arena determinava a proximidade com o público e inviabilizava a aposta em cenografias suntuosas. Já o ingresso de novos elementos dotou o Arena de um caráter político. A personalidade indefinida do início foi substituída pelo desejo de se debruçar sobre o cotidiano dos brasileiros menos abastados. O retorno de Augusto Boal ao país (em 1956) se revelou fundamental para a implantação dos Seminários de Dramaturgia, por meio dos quais os atores do Arena se lançaram na tarefa de escrever textos centrados na exposição de uma realidade que conheciam de perto.
A partir dessas características, o Arena se firmou em campo contrário ao do Teatro Brasileiro de Comédia, companhia conduzida pelo industrial italiano Franco Zampari, que priorizava a dramaturgia estrangeira em detrimento da brasileira (por causa da quase ausência de textos nacionais modernos e da falta de coragem de encenar peças de Nelson Rodrigues), através de espetáculos destinados a uma efervescente plateia burguesa. Pela via da oposição, o Arena deve a sua existência ao TBC, companhia essencial dentro do processo de renovação do teatro brasileiro que, de certo modo, foi injustiçada ao longo dos anos ao ser associada a uma cena convencional, padronizada, aristocrática.
Em relação a Eles não usam Black-Tie, Gianfrancesco Guarnieri sinaliza uma oscilação entre o dramático e o épico ao abordar os percursos de personagens específicos – de uma família operária, formada por pai (Otávio), mãe (Romana) e dois filhos (Tião e Chiquinho), às vésperas de uma greve – e, ao mesmo tempo, transcender a esfera dos indivíduos ao destacar visões de mundo contrastantes – a de Otávio, voltada para o bem comum (no caso, a greve como instrumento de reivindicação de melhores condições para a classe operária), e a de Tião, para o favorecimento pessoal (aliar-se aos patrões e furar a greve para garantir o emprego, uma vez que a namorada está grávida). Essa oscilação, também presente em Chapetuba Futebol Clube, de Oduvaldo Vianna Filho, começou a pender para o lado do épico devido à urgência dos dramaturgos em falar sobre o Brasil, tendo em vista os acontecimentos conturbados que irrompem a partir da década de 1960. A Mais Valia vai Acabar, seu Edgar! marca essa nova fase na dramaturgia e o afastamento de Vianninha, autor do texto, do Arena, migrando para o Centro Popular de Cultura (CPC), movimento que procurou levar o teatro aos lugares onde não costuma chegar (fábricas, sindicatos, ligas camponesas, favelas).
O texto de Zanelatto – que, como o Arena, reverbera as vozes das chamadas minorias (a Ocupação contará ainda com as montagens de Suaves Notícias Futuras e Sherazade, Rainha do Saara) – tem vínculos evidentes com o de Guarnieri. Se em Eles não usam Black-Tie o conflito central se dava entre pai e filho, em Eles não usam Tênis Naique ocorre entre pai e filha. Ambas as peças são ambientadas na favela (geografia alterada na versão cinematográfica de Black-Tie, de Leon Hirszman, para a periferia no ABC paulista na virada da década de 1970 para a de 1980, período tomado por greves metalúrgicas), realçada em Tênis Naique pela presença dos atores da Cia. Marginal, coletivo que nasceu e se mantém ligado ao Complexo da Maré. Os atores frisam questão contida no texto de Zanelatto: a percepção de que o território no qual se passou todo ou boa parte do tempo constitui cada um. No momento da montagem de Isabel Penoni em que se colocam em primeira pessoa (a companhia realiza intervenção dramatúrgica), os atores afirmam com contundência a importância da Maré em suas vidas e se posicionam entre a necessidade de permanecer em espaço familiar, onde impera a sensação de pertencimento, e o de ir embora, devido à desilusão ou à dificuldade de continuar lidando com os códigos locais. Em contrapartida, na cena em que como personagens enumeram mazelas sociais e políticas predomina tom panfletário que denuncia a fragilidade da dramaturgia.
Geandra Nobre, Jaqueline Andrade, Phellipe Azevedo, Rodrigo Souza (responsável pela trilha sonora original, com Thomas Harres, que imprime forte pulsação à cena, sem reiterar os climas emocionais) e Wallace Lino encarnam os personagens de maneira passional, deixando claro que estão trazendo à tona suas realidades, não “só” no mencionado instante em que assumem suas identidades como nos demais, nos quais dão vida às figuras concebidas por Zanelatto. O elo entre atores e personagens é ainda evidenciado pela ocasional quebra da quarta parede. Um vínculo que não depende de correspondências físicas entre atores e personagens (o descompasso entre uns e outros é, inclusive, sublinhado); e nem do mecanismo de identificação tradicional (os atores, ao invés de se fixarem, se revezam entre os personagens). São recursos de descolamento que mais atestam a qualidade do jogo teatral da diretora Isabel Penoni do que distanciam os atores dos personagens e do universo descortinado. Penoni investe numa cena sintética, composta por um painel de fundo que contextualiza a ação no Rio de Janeiro, apesar de seguir mais a linha da estilização do que da reprodução fidedigna, e por quatro cadeiras manipuladas com habilidade pelos atores (cenário de Guga Ferro).
A realização de Eles não usam Tênis Naique desponta escorada numa dupla apropriação: de Marcia Zanelatto em relação à peça de Gianfrancesco Guarnieri, que serviu de inspiração para a situação-base de seu texto; e dos integrantes da Cia. Marginal acerca da peça de Zanelatto, utilizada para potencializar suas próprias jornadas, que ecoam com intensidade quando atuam desarmados, despidos da capa protetora da ficção. Nas demais passagens, nas quais os atores portam os personagens, a franqueza do depoimento aparece por dentro do texto, formando uma espessura entre o real e o ficcional.