Augusto Boal na Université de la Sorbonne – Nouvelle, em Paris (Foto: Acervo Cedoc-Funarte)
A relevância de Augusto Boal na história do teatro brasileiro – realçada, nesse momento, por uma exposição (com curadoria do cenógrafo Hélio Eichbauer) e uma encenação (Os que Ficam, com texto e direção de Sérgio de Carvalho, em cartaz apenas até o próximo domingo) – é incontestável. Em meados da década de 1950, Boal voltou dos Estados Unidos, onde estudou com John Gassner e foi aluno ouvinte no Actors Studio, e ingressou no Teatro de Arena, prestando fundamental contribuição na difusão dos ensinamentos de Constantin Stanislavski e no projeto dos Seminários de Dramaturgia, que consistia em fazer com que os próprios integrantes do grupo escrevessem textos, tendo em vista a clareza em relação ao universo a ser abordado: a realidade do brasileiro das classes menos abastadas.
O vigor político – marcante a partir da entrada de componentes do Teatro Paulista do Estudante, em 1955 – e a proposta nacionalista – encorpada com a célebre montagem de José Renato para Eles não usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, em 1958 – deram um perfil ao grupo, que começou impreciso na primeira metade dos anos 1950. Além de Guarnieri e Boal, Oduvaldo Vianna Filho (que se desligaria do Arena em 1960 para se dedicar ao Centro Popular de Cultura), Flavio Migliaccio, Milton Gonçalves e Francisco de Assis escreveram textos. O Arena também encenou peças estrangeiras, mas sempre buscando uma conexão com a realidade brasileira – não por acaso, uma corrente denominada como nacionalização dos clássicos. Dentro do grupo, Boal conduziu ainda espetáculos estruturados de acordo com o Sistema Coringa, que implicou no barateamento dos custos das produções, na medida em que os atores (com exceção do protagonista) deveriam se revezar em mais de um personagem.
Entretanto, o trabalho de Boal não ficou restrito ao Arena, a julgar pela sua direção do show Opinião, mescla de depoimentos e canções que dotou a música de força política, e pela criação do Centro do Teatro do Oprimido, que visava a fazer com que o espectador tomasse consciência de sua condição de opressão, de modo a talvez transformar, por meio do teatro, a sua realidade. A prática do Teatro do Oprimido se internacionalizou. Foi empregada em países desenvolvidos porque a circunstância de opressão pode ser subjetiva e não “tão-somente” decorrente de um contexto sócio-econômico.
Todas essas informações estão reunidas na exposição, composta pela exibição de vídeos centrados em contribuições de Boal; fotos de cena, matérias de jornais e programas de espetáculos tanto dirigidos por Boal quanto realizados a partir de textos dele; painel com os acontecimentos da trajetória de Boal (incluindo os anos de exílio, em Buenos Aires, durante a década de 1970, e o período na Université de la Sorbonne-Nouvelle, em Paris); projeção de imagens com flagrantes de Boal trabalhando; e livros que trazem suas proposições artísticas.
Cena da montagem de Os que Ficam, em cartaz até domingo no CCBB (Foto: Divulgação)
Os que Ficam – Em cartaz na Sala A do Centro Cultural Banco do Brasil, a montagem de Sérgio de Carvalho, diretor da Cia. do Latão, parte de um registro interpretativo em primeira pessoa, no que se refere ao rápido depoimento de alguns atores do elenco, que revelam os vínculos – ou a ausência deles – familiares com a política. Esse teor pessoal do trabalho sobressai em outros momentos, a exemplo da lembrança de um dos principais locais de tortura durante a ditadura militar – na Rua Tutoia, no bairro do Paraíso, em São Paulo –, da evocação da música Eu vivo num Tempo de Guerra, composta por Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, emblemática no repertório da cantora Maria Bethânia, e, em especial, da presença de Julian Boal, filho de Augusto Boal, lendo cartas escritas pelo pai.
A natureza pessoal do espetáculo pode ainda ser detectada na preocupação em olhar para o passado (a Cia. do Latão tem se debruçado sobre a década de 1970, como, recentemente, na montagem de O Patrão Cordial, apropriação da peça O Senhor Puntilla e seu Criado Matti, de Bertolt Brecht) sem perder o presente de vista. Ao longo de Os que Ficam, determinadas questões que atravessam o tempo vêm à tona, como a importância de abordar a realidade de maneira dialética, não maniqueísta, a noção limitada de cultura, desvinculada da experiência política, e a busca por uma representação justa do homem comum, muitas vezes retratado de forma tipificada, distante da humanidade, a partir de um interesse sincero pelo outro, da tentativa de se afastar de uma perspectiva autocentrada.
Os que Ficam, como os espetáculos da Cia. do Latão, surge da necessidade de realização de um teatro vivo, que resulte da continuidade de uma linha de pesquisa artística, de uma articulação entre teoria e prática. Mas o caráter responsável da empreitada – próprio de um grupo que evidencia resistência ao se manter fiel aos princípios numa época em que negociação é palavra de ordem – não oculta algumas fragilidades, perceptíveis na dramaturgia (nas cenas de embate entre os atores engajados na construção de uma montagem de Revolução na América do Sul, de Augusto Boal) e no esgarçamento do espetáculo. Cabe, em todo caso, ressaltar, apesar do início claudicante, as atuações de Helena Albergaria, contundente nos instantes de enfrentamento, e Rogério Bandeira, uma presença segura.