Isabel Teixeira, Julia Bernat e Stella Rabello: as três irmãs (Foto: Paulo Camacho)
Por meio do projeto de E se elas fossem para Moscou?, Christiane Jatahy dá continuidade à sua linha de pesquisa centrada na interface entre teatro e cinema. Agora, a diretora apresenta duas obras concomitantemente: a montagem em si e a filmagem da própria (que, porém, não se reduz a mero registro da encenação). Ambas são vistas ao mesmo tempo, por plateias diversas, em espaços distintos (Mezanino e Sala Multiuso) do Sesc Copacabana.
Depois de se apropriar de Senhorita Julia, de August Strindberg – na encenação de Julia, estruturada a partir do entrelaçamento entre as cenas da montagem e imagens gravadas previamente e no instante da apresentação – e de realizar um filme – A Falta que nos Move – como desdobramento de um espetáculo – A Falta que nos Move… Ou Todas as Histórias são Ficção –, mas dotado de vida independente em relação a ele, Jatahy decidiu operar sobre As Três Irmãs, de Anton Tchekhov, num trabalho em que reforça (sem se repetir) seu trânsito entre os campos do teatro e do cinema. No entanto, esse “entre” desponta, dessa vez, mais como acúmulo do que como indefinição.
A sensação do “entre” como acúmulo decorre de diferentes esferas do projeto. No que diz respeito ao registro de atuação, calcado na minuciosa construção de uma naturalidade, as atrizes se relacionam tanto com a circunstância da apresentação teatral quanto com a presença da câmera. Dispostas em espaço intimista, procuram estabelecer cumplicidade com a plateia através de falas destituídas de impostação, distantes de um tom de declamação.
Em certos momentos, as atrizes sussurram. No âmbito da encenação, a fala inaudível parece decorrer de um fluxo contínuo, que não é interrompido quando o foco não recai sobre si, o que aumenta a sensação de veracidade por parte do público. No do filme, as atrizes, por meio do sussurro, atuam para a câmera. Falam diante dela algo que só será escutado pelos espectadores do cinema. O acesso das duas plateias é, como se pode notar, distinto.
Vale citar mais exemplos. O público do filme tem acesso a uma passagem que o da encenação não enxerga – “apenas” ouve – simplesmente porque se passa para além das bordas do palco. E a plateia do filme nem sempre vê com quem a atriz contracena, mas é “compensada” com uma nova perspectiva. Quando contracenam com um ator/personagem que não é visto pela plateia do filme, as atrizes olham para a câmera, como se estivessem se voltando para o espectador.
Isabel Teixeira, Julia Bernat e Stella Rabello interpretam as três irmãs. Contudo, não são as únicas que atuam. Paulo Camacho, Rafael Rocha, Felipe Norkus e Thiago Katona se responsabilizam por determinadas tarefas (coordenação de vídeo, música) e alguns entram em cena, incumbidos de personagens coadjuvantes da peça de Tchekhov. Trata-se, portanto, de mais um sinal do “entre” como acúmulo, ainda que a atenção destinada aos trabalhos das atrizes tenha sido maior que aos atores-técnicos, a julgar pelo refinamento do resultado alcançado com elas.
A gramática do cinema é considerada durante a apresentação teatral e não só no que se refere ao manejo da câmera. Apesar da matriz do projeto ser o teatro, há uma proposta de linguagem lançada aos espectadores que assistem ao vídeo. A câmera é quase sempre fechada no rosto das atrizes. A sucessão de closes acentua a sensação de opressão, já presente nos elos claustrofóbicos travados pelas irmãs. A câmera direciona o olhar do espectador, ao contrário do que ocorre no espaço teatral. Apenas em breves instantes é possível à plateia do filme visualizar a extensão do palco.
O público da montagem é colocado em espaço bem diverso do que acompanha o filme: enquanto o primeiro se depara com uma cenografia detalhada (de Christiane Jatahy e Marcelo Lipiani), o segundo é conduzido rumo a uma sala vazia, que tem no telão o único elemento proposto. Os espectadores da encenação recebem um papel – o de convidados de uma festa de aniversário. São servidos de bolo, suco e salgados em instantes de suspensão da quarta parede em notada diminuição da hierarquia entre os que fazem e os que assistem.
Os espectadores do filme tendem a estabelecer uma apreciação mais passiva, pelo menos até o momento em que as atrizes aparecem na sala de projeção e quebram a perspectiva do cinema como manifestação artística atrelada ao passado (à repetida exibição de material previamente gravado). Christiane Jatahy defende um cinema do presente, uma vez que o público do filme acompanha a gravação da montagem daquela noite. Nesse sentido, E se elas fossem para Moscou? não oscila entre passado e presente, mas afirma o presente, visão realçada pelo jogo de espelhamento entre as duas plateias ao final da sessão.
Há outras tensões – ligadas ao “entre”, termo nuclear de todo o trabalho – que transparecem na concepção do cenário. Ao mesmo tempo em que existe uma proximidade com a cena realista, tendo em vista a reconstituição fidedigna da sala da casa familiar, ocorre uma imediata quebra da ilusão propiciada por essa vertente, na medida em que o cenário é constantemente manipulado, como se o palco fosse, na verdade, um set de filmagem. E a atmosfera de época sugerida na cenografia é atritada pelo tom marcadamente contemporâneo, evidenciado na coloquialidade do texto, nas referências (aplicativos de relacionamento no telefone celular) e na interpretação das atrizes.
Talvez a determinação em transportar As Três Irmãs para os dias de hoje esteja ligada ao desejo de atestar a atualidade de Tchekhov, um autor que atravessou o tempo. Um mecanismo que remete ao concretizado por Louis Malle no filme Tio Vanya em Nova York ao não sublinhar a transição entre a conversa dos atores sobre acontecimentos do cotidiano e o início da apresentação de Tio Vanya. Ricardo Cota, em crítica publicada no Jornal do Brasil (“Documento sobre atores sem compromissos”), realçou essa operação de Malle. “A transição da conversa dos bastidores para a peça é feita sutilmente. No momento mais genial do filme, o espectador, sem perceber, já está assistindo a uma cena de Tio Vanya. Esta passagem simples reforça com brilhantismo a atualidade do texto original”. Entretanto, enquanto Malle promoveu uma quase equivalência entre diálogos coloquiais da segunda metade da década de 1990 e as falas de um texto do começo do século XX, Jatahy sublinha o século XXI ao ambientar a ação nos dias de hoje, em que pese, como já foi dito, a evocação do passado através da cenografia.
A atualidade de Tchekhov surge localizada, nesse espetáculo, na relevância da mudança como força desestabilizadora, questão que, inserida em excesso na dramaturgia, ganha o peso de uma mensagem endereçada ao público. Como em As Três Irmãs, as personagens expressam dificuldade em realizar transformações em suas vidas, simbolizadas por uma necessidade de deslocamento geográfico. Não significa obrigatoriamente que permaneçam estagnadas, mas muitos de seus projetos terminam abortados.
E se elas fossem para Moscou? sinaliza um inegável avanço de Christiane Jatahy em sua pesquisa e uma notável habilidade para extrair dos atores trabalhos plenamente integrados. Não há desnível no rendimento interpretativo, mas cabe fazer menção especial a Isabel Teixeira, irrepreensível na precisão dos tempos, no preenchimento dos silêncios de uma personagem que se avoluma em cena não através da contundência, e sim da melancolia.