Gólgota Picnic, espetáculo de Rodrigo García (Foto: Ligia Jardim)
A importância da 1ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MIT-SP) – que, com idealização e direção artística do encenador Antonio Araujo, tomou conta, entre os dias 8 e 16 de março, de variados espaços da capital paulista – diz respeito a uma reunião de espetáculos inquietos e desestabilizadores, mas também ao desejo de estabelecer um diálogo reflexivo com o público por meio de uma programação que incluiu encontros com realizadores (incumbidos de discorrer acerca dos processos de criação dos trabalhos apresentados) e profissionais de áreas diversas do teatro (encarregados de traçar um elo entre os seus campos de atuação e determinado espetáculo da MIT) e debates sobre terrenos como o da crítica teatral. Felizmente, a segunda edição da Mostra, agendada para o ano que vem, já foi anunciada.
Gólgota Picnic, encenação de Rodrigo García juntamente com a companhia La Carnicería, da Espanha, foi uma das experiências mais impactantes da MIT. O espetáculo, que revisita o calvário de Jesus Cristo sob perspectiva crítica, propõe uma espessura entre texto e imagem. Projetadas em telão, as imagens não reiteram o texto. Os dois planos surgem articulados de modo interessante, mesmo que seja difícil manter a atenção no caudaloso texto, estruturado por meio de uma sucessão de monólogos, dada a virulência das imagens – o embate passional entre os corpos cada vez mais cobertos de tinta se impõe com força inegável.
Os atores (Gonzalo Cunill, Nuria Lloansi, Juan Loriente, Juan Navarro e Jean-Benoît Ugeux) transitam sobre o palco forrado com 25 mil pães de hambúrguer Uma imagem, de início, intocada, que vai sendo, aos poucos, corrompida, arruinada, degradada. Produzem imagens que sugerem crescente animalização, selvageria, embrutecimento em proposta notadamente visceral. Na segunda parte da encenação, a cargo do pianista Marino Formeti, García investe em bem-vinda desaceleração, confrontando a plateia com uma apreciação contemplativa que pode ser percebida como exasperante por espectadores mais sintonizados com o vapt-vupt contemporâneo.
Também da Espanha, o público assistiu a Eu não sou Bonita, performance de Angelica Liddell concebida a partir de fato trágico de sua vida: o estupro que sofreu, aos nove anos. Liddell coloca em suspensão a noção tradicional de personagem ao evidenciar o seu comprometimento com o “relato”. Realça a veracidade do “depoimento” por meio de uma cena de mutilação. Rompe a convenção cenográfica ao “interagir” com um cavalo de verdade. Entretanto, o trabalho artístico decorre de uma construção – nesse sentido, de uma ficcionalização do real –, que, aqui, é algo questionável. Ao contrário de Gólgota Picnic, em Eu não sou Bonita ocorre certa reiteração – no caso, entre os planos do registro interpretativo e do texto propriamente dito, ambos contundentes.
Cineastas, espetáculo de Mariano Pensotti (Foto: Bea Borgers)
O real norteou as criações de Ubu e a Comissão da Verdade, encenação da Handspring Puppet Company, da África do Sul, e Escola, de Guillermo Calderón, do Chile. A montagem dirigida por William Kentridge, a partir de texto de Jane Taylor, entrelaça Ubu Rei, de Alfred Jarry, com o interrogatório da Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul. O encenador destaca procedimentos como animação e teatro de bonecos que, diferentemente da leveza que tenderiam a contaminar a cena, são empregados em passagens de relatos de torturas e extermínios, gerando tensão e instigante aproximação com o documental. O bom resultado deve ser creditado, em medida considerável, ao elenco (Dawid Minnar, Busi Zokufa, Gabriel Marchand, Mongi Mnthombeni, Mandiseli Maseti). Em Escola, a plateia acompanha a preparação de um grupo militante para ações contra a ditadura chilena na década de 1980. Os integrantes, encapuzados para não reconhecerem nem o aparelho e nem si mesmos, recebem instruções detalhadas em tom didático, mas fervorosamente engajado. A montagem, bastante econômica (há poucos elementos e uma trilha sonora suave, de Felipe Bórquez), valoriza os atores (Luis Cerda, Francisca Lewin, Camila González, Carlos Ugarte e Trinidad González), que, sem se valerem da exposição de suas expressões faciais, apagam os sinais de representação. Dão a impressão de não estarem atuando em registro calcado em refinada invisibilidade.
A simbiose entre vida e arte desponta em Cineastas, espetáculo da Cia. Marea, da Argentina, conduzido por Mariano Pensotti, também autor do texto. Os personagens dos cineastas canalizam para os filmes que realizam as suas questões pessoais (a tentativa de reconexão com a infância, a necessidade de resgate da identidade perdida, a súbita revelação de uma doença incurável reverberando no trabalho). Os personagens empreendem presentificações do passado que, em si, não tem como ser recuperado. Não por acaso, Cineastas é um espetáculo sobre o tempo. O cinema é abordado como uma manifestação capaz de congelar o tempo. Ainda assim, trata-se de uma arte irremediavelmente atrelada ao passado, na medida em que baseada na repetida projeção de um material já feito. A sua ligação com o presente se refere à experiência do espectador no instante em que se depara com a obra, mas não à obra em si. Fora do campo artístico, o cinema afirma o seu vínculo com o passado por meio da função de registro, mais eficiente do que outras formas que tendem a acabar com o passar do tempo (a exemplo da mencionada foto que foi se apagando lentamente até ficar impossível a identificação dos que nela estão).
Pensotti conjuga passado e presente através dos planos de narração e vivência, esferas percorridas pelos atores (Elisa Carricajo, Javier Lorenzo, Horacio Acosta, Marcelo Subiotto, Valeria Lois). Potencializa as dimensões de realidade e ficção por meio de uma arquitetura cênica (de Marina Tirantte) composta por dois apartamentos sobrepostos. Nas sessões ocorridas no Auditório do Ibirapuera, porém, apenas os espectadores acomodados na parte central da sala puderam apreciar integralmente a proposta, uma vez que os localizados nas laterais ficaram relegados a uma visão bem parcial do dispositivo. Uma prova de que a escolha do espaço não foi particularmente adequada para essa encenação.