Tragédia contemporânea
Marieta Severo interpreta Nawal Marwan na montagem de Incêndios (Foto: Leo Aversa)
Peça do libanês Wajdi Mouawad adaptada com sucesso para o cinema pelo canadense Denis Villeneuve, Incêndios guarda conexão com a tragédia grega. Ao apresentar a via-crúcis de uma mulher, Nawal Marwan – descortinada em flashback a partir do momento em que seus dois filhos, Jeanne e Simon, recebem duas cartas, nas quais a mãe, recentemente falecida, os incumbe de procurar pelo pai e por um outro irmão sobre quem até então não tinham notícia da existência –, o autor evidencia ligação com características da tragédia, como a impossibilidade do protagonista ter acesso à verdade integral (pelo menos, durante boa parte do tempo), o conflito insolúvel entre a determinação individual e a lei coletiva e a inflexibilidade na maneira como age para alcançar seus objetivos. Como outras personagens trágicas, Nawal não se lamenta diante de todo o sofrimento com o qual se depara. Ao contrário, ela se mostra seca, direta, decidida.
Paralelamente ao elo com a contenção da tragédia clássica, Mouawad confronta o espectador com desdobramentos um tanto carregados (excessivos, nesse sentido) em relação à história que conta. A revelação dos fatos relativos à vida de Nawal soa algo novelesca. Contudo, o autor contrabalança a sucessão de acontecimentos trágicos com uma abordagem que não envereda por um tom melodramático. Aderbal Freire-Filho mantém esse equilíbrio na montagem em cartaz no Teatro Poeira. Se por um lado há certas opções questionáveis – como a inclusão do público (nos primeiros minutos, a luz permanece acesa sobre a plateia), que poderia ser mais conceituada –, por outro Aderbal não cede a exageros na transposição da peça para o palco.
É pela qualidade da encenação que essa versão de Incêndios se impõe com mais destaque. Fernando Mello da Costa criou uma estrutura cenográfica que confere apreciável austeridade e, ao mesmo tempo, noção de síntese. Acertadamente, não localiza a ação e tende a estimular a imaginação do espectador. Talvez, inclusive, os atores pudessem trabalhar sem o auxílio dos objetos, utilizados ao longo do espetáculo. A atmosfera imponente é realçada pela bela iluminação de Luiz Paulo Nenen. Os figurinos de Antônio Medeiros foram concebidos visando à coerência cromática. E a rascante partitura sonora de Tato Taborda lança proposições sobre a cena, ao invés de tão-somente reiterar o texto.
As maiores dificuldades da montagem despontam no rendimento dos atores. Apenas parte do elenco projeta a humanidade dos personagens de Mouawad. Marieta Severo – que transitou pelo terreno da tragédia grega em Antígona, de Sófocles, na encenação de Moacyr Góes – evita o derramamento emocional nesse texto contemporâneo, mas sem, com isso, adotar uma interpretação fria, expositiva, para Nawal. A atriz está especialmente bem na passagem final, no modo como se refere ao filho quando já sabe de toda a verdade sobre ele. Kelzy Ecard, como Sawda, comprova a extensão de seus recursos na cena em que camufla o rosto com intensidade passional. E Marcio Vito, como Hermile Lebel, injeta humor e afetividade a um personagem que possui uma função mais concreta dentro da trama.