Maria Amélia Farah em Ficção: relato quase sem artifícios aparentes
O título escolhido, Ficção, pode causar estranhamento, uma vez que a intenção dos integrantes da Cia. Hiato com esse projeto – centrado na disponibilidade dos atores em criar solos reveladores de acontecimentos de suas próprias vidas, voltados para relacionamentos dolorosos – seria justamente a contrária. Entretanto, o diretor Leonardo Moreira e os atores talvez tenham partido da constatação de que não há como escapar da ficção. Afinal, os fatos reais, quando trazidos à tona, passam, inevitavelmente, por um processo de ficcionalização, tendo em vista que surgem como versões pessoais e não como registros imparciais do passado.
Na última temporada no Rio de Janeiro (na Caixa Cultural), os relatos foram agrupados em três programas, divisão que parece calcada em afinidade entre os pares. Aline Filócomo e Fernanda Stefanski não declaram, a princípio, seus comprometimentos com o que descortinam diante do público. A evolução rumo ao essencial, que se impõe a partir da inserção de certa gravidade na apresentação de suas histórias e da passagem de uma movimentação expansiva para a contenção, evidencia estruturas de construção dramatúrgica algo previsíveis. Maria Amélia Farah e Thiago Amaral relatam, ainda que de formas diversas, experiências sofridas com a mãe e o pai, incluindo parentes em cena (o filho da atriz – que, porém, não participa mais das sessões, o pai do ator). E Luciana Paes faz constante menção (mesmo que por oposição) à atriz Paula Picarelli, cujo solo não desembarcou na recente vinda da Cia. Hiato ao Rio.
O monólogo de Maria Amélia Farah é o mais despojado, destituído de subterfúgios dramatúrgicos explícitos, aquele em que a transparência e a integridade do depoimento sobressaem. Há poucos recursos perceptíveis, como o instante em que a atriz começa a se referir a si em terceira pessoa. Não por acaso, isto se dá quando discorre sobre a determinação em realizar radicalmente o sonho da mãe e se esforça para conseguir uma vaga como dançarina do ventre nos Emirados Árabes, o que significa se ausentar de si. A revelação do vínculo com uma mãe obsessiva ocorre gradativamente numa exposição sem efeitos.
Thiago Amaral revisita os embates passionais com o pai, decorrentes, em linhas gerais, da dificuldade de administrar o descompasso entre a imagem de filho idealizada e a real. Por meio do desnudamento literal, o ator chama atenção para o caráter de revelação de seu trabalho. Essa dimensão é contrabalançada com o momento em que veste um personagem fantasioso (um coelho) e firma um acordo inviável com o pai – o de extirpar a reverberação emocional durante a evocação do passado em comum. O personagem do coelho é usado como uma estratégia que, possivelmente, torna menos penosa para o ator a árdua tarefa de falar sobre si, procedimento também empregado pela atriz Luciana Paes ao propor uma simbiose com a pintora Frida Kahlo.
De qualquer maneira, o contraste é uma operação presente no pequeno espetáculo de Thiago Amaral, já que o ator integra à sua visão do passado uma proposta de cena imaginada pelo pai, oposta a um teatro essencial, sintético, plataforma encampada por Thiago e pelo projeto de Ficção como um todo. Através da inclusão da sequência do pai, o ator acena com a possibilidade do respeito e do convívio com a diferença. Este espírito conciliador se sobrepõe a certo tom de superioridade em relação ao pai, marcante no início da apresentação, que, nos primeiros minutos, cumpre as indicações apontadas pelo filho.
Fernanda Stefanski assume a ficcionalização ao, aparentemente distanciada, comentar sua história a partir da eventual conexão com referências cinematográficas (Alfred Hitchcock) e literárias (Truman Capote) e de um enfoque maniqueísta, na qual os personagens são descritos como vítimas ou vilões. Realça os estágios de criação da cena (a concepção cenográfica, de Marisa Bentivegna, composta por dois camarins com objetos pessoais dos atores dispostos em extremidades do espaço, valoriza a natureza íntima e processual do projeto na contramão de um acabamento tradicional). Mas, na segunda metade, seu relato adensa. Fala sobre si a partir do suicídio do tio até culminar com o dramático envolvimento com um namorado em explanação ilustrada por fotos.
Aline Filócomo investe em estrutura dispersa e acelerada em que dialoga com o público, lança perguntas, mas responde-as de imediato, buscando, contudo, uma abordagem mais concentrada à medida que o solo avança. Foca na multiplicidade de si ao enumerar os personagens que fez e aqueles que deseja interpretar e desvenda seu modo de funcionamento ao destacar o elo com a irmã, com quem partilha a bela cena final.
A reunião de trabalhos nesse projeto da Cia. Hiato potencializa a discussão em torno da relação entre ator e personagem. Se o ator não tem como se ausentar de si na construção de um personagem, este pode ser entendido, em níveis distintos, como uma instância reveladora do intérprete. Em Ficção, essa característica fica bem mais acentuada. Sem contar com semelhante grau de proteção propiciado por uma esfera ficcional convencional, o ator entra em cena mais despido do que o habitual, munido de personagem porque não há como fazer com que ele deixe de existir quando se está sendo observado por espectadores. No entanto, aqui o personagem desponta como biombo transparente do ator.