Transcendência no cotidiano
Analu Prestes em Emily: o impacto do trabalho artesanal
William Luce traz à tona a trajetória da poetisa americana Emily Dickinson, traçando um panorama de sua vida pessoal – com destaque para o pai, figura repressora e, ao mesmo tempo, alvo de admiração, os elos platônicos travados com poucos homens e o exílio voluntário. Nessa abordagem intimista, Emily se impõe como uma força positiva, algo distante de um quadro depressivo, imersa em ambiente doméstico. Não por acaso, a montagem de Eduardo Wotzik apresenta Emily em espaço bucólico, o quintal da casa em Amhrest (Massachussets).
A natureza não desponta na encenação como mero objeto de contemplação. Através dela, Emily parece atingir certo estado de transcendência. Há um interessante contraste entre o vínculo com os pormenores do cotidiano e a conexão com essa instância superior. O texto, que surge como um relato suave de fatos marcantes da vida de Emily, não biografa a personagem e nem envereda por uma perspectiva subjetiva a partir de mergulho em sua poesia. Este equilíbrio é ferido, em alguma medida, pelo uso da narração empregado para localizar o público em relação à Emily. Se o recurso serve à transmissão de dados que não poderiam ser passados de outra forma (os muitos escritos encontrados após a morte de Emily, quando só finalmente alcançou o reconhecimento devido), em determinados momentos deveria ter sido dispensado e inserido na dramaturgia (a exemplo da informação referente à relativa morbidez da personagem).
A montagem dispõe a plateia em três arquibancadas que envolvem a cena. Analu Prestes procura incluir o espectador através do olhar, assumindo a proximidade, mas sem buscar interação direta. Como Emily, a atriz revela habilidade nas transições emocionais. As criações se somam num todo orgânico, seja pelo entrosamento entre diretor e atriz, seja pela ligação de Analu (que assina a direção de arte) com as artes plásticas. A cenografia realça como elemento principal uma árvore com folhas coloridas, além de um banco e uma superfície que remete a areia. O figurino, um vestido branco rendado, sublinha o caráter artesanal do trabalho, potencializado pelas borboletas azuis espalhadas pelo hall do teatro Poeirinha. A iluminação de Fernanda Mantovani ressalta a integração de Emily com a natureza, até quando fecha o foco em torno da personagem. A trilha sonora de Paulo Francisco Paes pontua a cena com delicadeza. Poetisa interpretada anteriormente pela atriz Beatriz Segall em prestigiada montagem dirigida por Miguel Falabella, na década de 80, Emily ganha nova – e oportuna – visita.